Juan Domingo Perón, figura central na história política argentina do séc. XX, caiu do poder em Setembro de 1955 na sequência de um golpe de Estado levado a cabo por vários militares. Instalou-se então no país a auto-denominada Revolução Libertadora. Um ano depois, a libertação disse ao que vinha com uma sequência de fuzilamentos dos quais o mais conhecido será o Massacre de José León Suárez (localidade na zona norte da Grande Buenos Aires). Rodolfo Walsh (n. 9 de Janeiro de 1927), lendário jornalista argentino, encarregou-se de investigar esses acontecimentos, compilando os resultados da investigação num livro intitulado Operación Masacre. A primeira edição data de 1957 (portanto, muito em cima dos acontecimentos), tendo o livro sofrido várias reedições ao longo dos anos, com prólogos diversos, mas sempre a mesma intenção: dar testemunho de uma atrocidade nunca retractada pelos sucessivos governos da Argentina. Esta edição, datada de Novembro de 2010, da responsabilidade das Ediciones de la Flor, foi-me oferecida por generosa alma dos altos mares. A enriquecer o texto original, vários apêndices permitem-nos entender melhor a postura de Walsh perante os acontecimentos políticos de que foi testemunha viva e actuante. E dessa percepção retiramos o exemplo de um jornalismo corajoso e desassombrado, fiel à sua missão essencial, isto é, testemunhar, tanto quanto isso signifique denunciar, a impunidade dos criminosos que estão no poder. O próprio demarca-se de simpatias políticas, afirmando-se tão distante do peronismo como desiludido com a dita Revolução Libertadora, sublinhando desse modo uma atitude comprometida, única e exclusivamente, com a verdade dos factos. Por isso conclui: «la actitud del terrorista de abajo que coloca una bomba es la respuesta al terrorismo de arriba que aplica la picana»; e adianta: «la bomba que mata a un inocente no se diferencia gran cosa de la descarga del pelotón que mata a outro inocente» (p. 210). Este tipo de comparação pode indiciar um humanismo algo ingénuo, ainda que vá no sentido das reais preocupações de Rodolfo Walsh: um jornalismo livre e independente, uma profunda desacreditação das boas intenções revolucionárias e a persecução permanente da paz. Os acontecimentos relatados em Operación Masacre não se distinguem de outros fuzilamentos clandestinos que mancham a história da humanidade, senão pelo facto algo caricato de alguns fuzilados terem sobrevivido para contar a história. Entre eles, Juan Carlos Livraga, um sobrevivente dos assassinatos de 9 de Junho de 1956, um eventual peronista radical que faria parte de um grupo de homens com uma suposta missão anti-revolucionária. O processo kafkiano de que foi vítima leva-nos a acreditar numa realidade inspirada na ficção. O esforço colocado por Walsh na reabilitação deste homem é tremendo, pondo inclusive em causa a autonomia do poder judicial face ao poder político e considerando de cúmplice e facciosa toda a justiça militar. Não é por isso de estranhar o destino do lendário jornalista argentino. Já na década de 1960, a Revolução Libertadora foi substituída por uma Junta de Comandantes. Em Março de 1977, Walsh escreveu a Carta Abierta de un Escritor a la Junta Militar que haveria de ditar a sua sentença. Trata-se de um documento impressionante onde o jornalista oferece o peito às balas e confronta o poder de então com dados, números, exemplos vários de um regime sentado sobre um monte de cadáveres, «delegados sindicales, intelectuales, familiares de guerrilleros, opositores no armados, simples sospechosos a los que se mata para equilibrar la balanza de las bajas según la doctrina extranjera de “cuenta-cadáveres” que usaron los SS en los países ocupados y los invasores en Vietnam» (p. 228). Entre as vítimas, diga-se, jazia María Victoria, filha do jornalista, morta em confrontos com o exército no ano de 1976. No ano seguinte o autor da carta foi sequestrado e, presume-se, assassinado por um grupo de militares, terminando desse modo mais que previsível uma vida onde a verdade terá sido a sua principal arma de combate, uma verdade tão simples e evidente quanto é a de que nenhum poder político se erige senão sobre alicerces onde a corrupção e a mentira ditam as regras e as normas contra as quais há sempre que lutar, na medida do possível e do necessário. O sublinhado é nosso, "perdoe-se-nos" a presunção.
1 comentário:
bang bang...
está muito bom. requere-se a tradução e edição em português. urgente.
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