sexta-feira, 23 de março de 2012

NOS SONHOS COMEÇAM AS RESPONSABILIDADES

Nem uma tradução paupérrima pode demover o entusiasmo com que recebemos a notícia da primeira edição portuguesa dos contos de Delmore Schwartz (1913-1966). O prefácio de Lou Reed, chamado à capa como se fosse autor, compreende-se enquanto táctica comercial, mas não adianta absolutamente nada. Sabíamos da admiração que o ex-Velvet nutria pelo seu professor predilecto, a influência foi sempre assumida. Não podemos deixar de considerar triste sina esta de alguém fazer valer um autor por ele ter sido professor de um astro do rock’n’roll. O prólogo de Irving Howe e a introdução de James Atlas acabam por explicar o problema, contextualizando o autor e ajudando a perceber a importância de uma malograda obra. Schwartz não representa apenas um anjo em queda, o escritor de sucesso caído em desgraça tão desgraçada que foram precisos vários dias na morgue até que alguém reclamasse o seu desaparecimento. Schwartz, o contista mas também o poeta, foi um exímio retratista do «ambiente claustrofóbico da família» (Atlas) e das angústias existenciais que facilmente levam ao desespero qualquer homem consciente de si. As fobias que o atazanaram estão patentes no primeiro dos seus livros, este In Dreams Begin Responsibilities (1938), que a Guerra & Paz deu à estampa em Fevereiro passado. Marcado pelo divórcio dos pais quando contava apenas 9 primaveras, o autor de Nos Sonhos Começam as Responsabilidades exorcizou o trauma neste conto inicial. Tinha 21 anos quando escreveu a história e já se dera a conhecer enquanto poeta. Um sonho transporta um indivíduo para uma sala de cinema onde vê percorrer no ecrã a história de vida dos seus pais; quando chega ao ponto em que pai e mãe se apaixonam, levanta-se e grita: «Não façam isso. Não é tarde para ambos mudarem de opinião. Nada de bom vai sair daí, apenas remorsos, ódio, escândalo e dois filhos cujas personalidades são monstruosas» (p. 39). Os contos de Delmore Schwartz estão infectados por estes “mistérios da vida familiar”, entram em ruptura com uma suposta paz doméstica questionando a solidez da tradição familiar. É verdade que também podemos vislumbrar neles o sentido de um conflito geracional entre famílias de origem judaica no ambiente da grande depressão norte-americana, mas o que mais se evidencia é o sufoco instaurado pelas expectativas dos filhos relativamente aos pais e dos pais relativamente aos filhos. É como se esse castelo, essa muralha, esse abrigo a que chamamos família acabasse dinamitado pelas fragilidades dos seus constituintes, importando questionar se a família, enquanto construção social, é mais um abrigo ou uma ameaça à sanidade dos indivíduos e um atentado à liberdade de cada ser. O rancor fragiliza os alicerces, a hipocrisia e a mentira fazem estremecer as paredes, as ambições tornam o chão sinuoso e levam ao desmoronamento da casa: «A classe média-baixa da geração dos pais de Shenandoah tinha criado perversões da sua própria natureza, crianças repletas de desprezo por tudo o que era importante para os pais» (p. 54, do conto América! América!) Estas perversões que são consequência de uma degeneração geracional fazem emergir a desilusão e o sentimento de fracasso. Num conto intitulado O mundo é um casamento são nítidas as dúvidas que distanciam os jovens de origem judaica de tudo o que os rodeia, deixando-os num limbo existencial sem referências onde procurar amparo. Não se revêem na família nem na comunidade, sentem que a cidade não precisa deles, fecham-se em pequenos círculos de amizade também ela questionável. As personagens destes contos espelham o que julgamos saber do seu autor, vivem mergulhadas em dúvidas cujas respostas vão sempre dar a cruzamentos sem orientação possível. Nos seus momentos mais hilariantes, como nos contos O Discurso do dia da Formatura e Screeno, revelam um desespero insuportável, explodem em acções e afirmações e pensamentos que só não julgamos anormais por sabermos terem sido impelidos por uma enlouquecedora contenção. E note-se como num só parágrafo, neste caso o primeiro do conto A criança é o significado desta vida, estão contidas todas as causas do mal:

Samuel Hart era o filho mais novo numa família de quatro crianças. O pai, que fora um homem forte e ambicioso, morreu de excesso de trabalho, que é como quem diz, de tanto tentar, e com tanto fervor e intensidade, enriquecer. Quando morreu, a filha mais nova, Sarah, já estava casada e a filha mais velha, Rebecca, já tinha iniciado uma carreira como estilista. Leonard, o jovem senhor da família e o terceiro dos filhos, estava a estudar para se tornar médico e a sustentar-se sozinho ajudando a gerir uma loja de charutos à noite. Desse modo, a morte do pai deixou a família intacta enquanto família, em especial tendo em conta que a mãe, Ruth Hart, era um ser humano poderoso que vivia pela devoção aos filhos.

O resto só lendo. Os sublinhados são meus.

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