Se é verdade que as casas começam a ser construídas por baixo, mentira não é que todas as vidas têm as suas paredes. Sempre que encontramos uma vida a descoberto sentimos medo e atrapalhação, ficamos sem saber onde pendurar os retratos. Um homem precisa de paredes onde pendurar os retratos, mesmo quando supõe poder passar bem sem casa própria, o aconchego infernal de um lar, essa gaiola acolhedora que impede os sonhos de voarem à altura das nuvens. Francesca tinha uma casa, era extremosa nos cuidados que punha em qualquer pormenor da vida doméstica. Tinha uma casa que lhe oferecia uma vida de pormenores, ou seja, um voo raso, quase rastejante, à altura de quem olha na terra as nuvens passarem no céu. Quando Robert se aproximou desorientado, ela tremeu enquanto lhe indicava a direcção certa para As Pontes de Madison County (1995). Desde o início que sentimos haver naquele estremecimento a perturbação de alguém que se prepara para atravessar a ponte, passar para o outro lado da margem sem saber o que vai encontrar. Quando ela abre o robe e deixa o vento refrescar-lhe o corpo suado, numa noite tórrida de verão, percebemos o desejo que acabara de ser acordado nas paredes do corpo. O estremecimento foi, precisamente, o acto de abrir os olhos, como se subitamente se abrissem janelas nas paredes da casa e o ar entrasse afastando o mofo doméstico, arejando a vida, oferecendo aos sonhos uma oportunidade. O que o ar oferece aos sonhos são penas que podem levantar o corpo da terra, erguendo-o à altura das nuvens onde vivem amotinados os sonhos. Depois ou troveja e nos escondemos atrás do medo ou deixamos o sol iluminar o caminho das sombras. A Francesca não restava outra oportunidade senão a segunda, deixar que as sombras fossem iluminadas pela luz de um encontro. Robert estava certo ao prever nesse encontro o grão essencial de uma vida. Ele sabia que uma vida inteira pode caber em quatro dias porque a vida se resume ao que o esquecimento não consome. Conseguimos imaginá-lo pelos anos adentro, a caminho da morte, recordando diariamente aqueles quatro dias, assim como acreditamos ter sido esse o destino de Francesca. A narrativa leva-nos a pensar isso mesmo quando revemos as fotografias, as cartas, as ofertas, os elementos materiais de uma união transcendente. Porque o que ali aconteceu, como a borboleta que não vemos, como o fervor que não sentimos, foi um encontro que extravasa os pormenores da vida doméstica, foi um sonho espreguiçado sob a sombra do tempo. O dramático desta relação não está na ausência perdurada até à hora da morte, ultrapassada pelo encontro das cinzas numa ponte que juntou as margens e uniu os corpos para não mais duplicar as vidas de ambos. Nada há de platónico nisto. O dramático desta relação está, afinal, em não ter também ela podido transformar-se numa vida de pormenores. Porque se acreditamos ser esse o destino de toda e qualquer vida doméstica, arrumada numa mesa posta e no silêncio que se intromete entre a prece e a refeição, não podemos deixar de acreditar que os sonhos serão apenas sonhos enquanto não forem concretizados. Sonhar é pois ficar na expectativa de como teria sido se não tivesse sido como foi, uma hesitação no semáforo, a porta por abrir, o sol lá fora e nós protegidos da chuva, afundando a dor em suposições, tentando agora o impossível: afastar para longe da memória o cheiro dos lugares, a voz da pele, a pele da pele, um vestido especial, o encontro dos corpos no primeiro toque, o som do silêncio quando alguém se aproxima, o sentido da caligrafia, o paladar ofertado por uma frase, por um gesto, pela dança das feridas.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
AS PONTES DE MADISON COUNTY
Se é verdade que as casas começam a ser construídas por baixo, mentira não é que todas as vidas têm as suas paredes. Sempre que encontramos uma vida a descoberto sentimos medo e atrapalhação, ficamos sem saber onde pendurar os retratos. Um homem precisa de paredes onde pendurar os retratos, mesmo quando supõe poder passar bem sem casa própria, o aconchego infernal de um lar, essa gaiola acolhedora que impede os sonhos de voarem à altura das nuvens. Francesca tinha uma casa, era extremosa nos cuidados que punha em qualquer pormenor da vida doméstica. Tinha uma casa que lhe oferecia uma vida de pormenores, ou seja, um voo raso, quase rastejante, à altura de quem olha na terra as nuvens passarem no céu. Quando Robert se aproximou desorientado, ela tremeu enquanto lhe indicava a direcção certa para As Pontes de Madison County (1995). Desde o início que sentimos haver naquele estremecimento a perturbação de alguém que se prepara para atravessar a ponte, passar para o outro lado da margem sem saber o que vai encontrar. Quando ela abre o robe e deixa o vento refrescar-lhe o corpo suado, numa noite tórrida de verão, percebemos o desejo que acabara de ser acordado nas paredes do corpo. O estremecimento foi, precisamente, o acto de abrir os olhos, como se subitamente se abrissem janelas nas paredes da casa e o ar entrasse afastando o mofo doméstico, arejando a vida, oferecendo aos sonhos uma oportunidade. O que o ar oferece aos sonhos são penas que podem levantar o corpo da terra, erguendo-o à altura das nuvens onde vivem amotinados os sonhos. Depois ou troveja e nos escondemos atrás do medo ou deixamos o sol iluminar o caminho das sombras. A Francesca não restava outra oportunidade senão a segunda, deixar que as sombras fossem iluminadas pela luz de um encontro. Robert estava certo ao prever nesse encontro o grão essencial de uma vida. Ele sabia que uma vida inteira pode caber em quatro dias porque a vida se resume ao que o esquecimento não consome. Conseguimos imaginá-lo pelos anos adentro, a caminho da morte, recordando diariamente aqueles quatro dias, assim como acreditamos ter sido esse o destino de Francesca. A narrativa leva-nos a pensar isso mesmo quando revemos as fotografias, as cartas, as ofertas, os elementos materiais de uma união transcendente. Porque o que ali aconteceu, como a borboleta que não vemos, como o fervor que não sentimos, foi um encontro que extravasa os pormenores da vida doméstica, foi um sonho espreguiçado sob a sombra do tempo. O dramático desta relação não está na ausência perdurada até à hora da morte, ultrapassada pelo encontro das cinzas numa ponte que juntou as margens e uniu os corpos para não mais duplicar as vidas de ambos. Nada há de platónico nisto. O dramático desta relação está, afinal, em não ter também ela podido transformar-se numa vida de pormenores. Porque se acreditamos ser esse o destino de toda e qualquer vida doméstica, arrumada numa mesa posta e no silêncio que se intromete entre a prece e a refeição, não podemos deixar de acreditar que os sonhos serão apenas sonhos enquanto não forem concretizados. Sonhar é pois ficar na expectativa de como teria sido se não tivesse sido como foi, uma hesitação no semáforo, a porta por abrir, o sol lá fora e nós protegidos da chuva, afundando a dor em suposições, tentando agora o impossível: afastar para longe da memória o cheiro dos lugares, a voz da pele, a pele da pele, um vestido especial, o encontro dos corpos no primeiro toque, o som do silêncio quando alguém se aproxima, o sentido da caligrafia, o paladar ofertado por uma frase, por um gesto, pela dança das feridas.
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7 comentários:
{em sintonia}
:)
obrigada.
...somos todos tão velhos
quando sabemos
tudo o que importa saber.
e agora olho dessa janela indiscreta
nesse comboio que um qualquer pastor
sonhou
num qualquer dia
( pode ser ontem
hoje
agora mesmo)
num qualquer lugar
(pode ser esse que acontece sob as tuas mãos
quando caio nos teus dias
e deixo que me traces uma paisagem
ou um desejo de paisagem toda
com céu ilimitadamente azul)e digo:
conta-me uma história. para que o mundo
este mesmo onde ainda agora caí
faça sentido...
blimunda
2005
agora é que arrumaste comigo!
"Sonhar é pois ficar na expectativa de como teria sido se não tivesse sido como foi..."
Bela essa sua frase! Aliás, o texto inteiro nos faz voltar à sala de cinema onde assistimos a esse filme sensacional!
Obrigado Sonia. Diz bem, sensacional.
Blimunda, falhei. A minha intenção era desarrumar(-te).
Maria, eu é que agradeço. :-)
Sandra, FM. :-)))
P.S.: Não há por aí nenhum gajo que tenha apreciado o filme a ponto de, vá lá, deixar aqui um comentário? :-))))))
apreciar o filme é dizer pouco: é um filme que desarruma... e depois levar com este texto teu...
"Ele sabia que a vida inteira pode caber em quatro dias porque a vida se resume ao que o esquecimento nõ consome."
Muito obrigada H. por tornar tão claro em palavras o que todos sabemos dentro do peito.
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