quarta-feira, 18 de abril de 2012

DOUTOR TRISTEZA

Mão generosa fez-me chegar um livro (o livro) de Augusto dos Anjos, poeta brasileiro contemporâneo de Pessoa que, apesar de ainda distante daquilo a que por cá chamamos de modernismo, parece antecipar um certo sentido experimental no que conhecemos da poesia brasileira. Isso nota-se, sobretudo, numa estonteante riqueza vocabular, que alguns julgarão de mau gosto e outros entenderão como percursora da liberdade de linguagem que em parte caracteriza a modernidade. Só para dar um exemplo, o primeiro poema de Eu, o Monólogo de uma Sombra, é uma orgia de vermes, larvas, micróbios, vírus que resulta numa autópsia do tempo e da sua indelével corrosividade. No entanto, há como que uma estética da dor expressa nessa «elegia panteísta do Universo», uma estética da dor que torna bela a ruína e alegre a decadência. Augusto dos Anjos nasceu em Paraíba do Norte a 20 de Abril de1884. Descendente de famílias com propriedades, foi alimentado com leite de escrava e educado pelo pai, homem erudito, leitor de Marx e simpatizante das ideias abolicionistas. Terá sido ao pai que Augusto foi herdar as suas características mais conhecidas: a misantropia e a hipocondria. Cresceu num ambiente culto, mas em franca decadência. Assistiu à ruína financeira da família e à decadência física do pai, falecido em 1905. Supõe-se que o primeiro poema tenha sido escrito em 1899, um soneto intitulado Saudade:

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noute quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida
.

Convenhamos que, para um jovem de 15 anos, não eram estes versos saudável prenúncio. Eis o retrato do poeta deixado aos vindouros: feio, ausente de festas e convívios, isolado, misantropo, neurasténico, desequilibrado, histérico. «Homem de poucos amigos, enrustido, abrindo-se só com os íntimos, e com estes afável e prestativo, sua personalidade, contudo forte, como que se apagava diante de estranhos. Emudecia» (Francisco de Assis Barbosa). Não se lhe conhecem grandes nem pequenas paixões, apenas uma alcunha entre colegas de Faculdade, o Doutor Tristeza, e outra atribuída pelo crítico dos seus primeiros versos publicados, Poeta Raquítico. Terminado o curso de Direito, elegeu a profissão de professor por razões meramente materiais. Já casado, sem conseguir vingar junto da sociedade de Paraíba, decidiu emigrar para o Rio de Janeiro. Chegou em Outubro de 1910. No Rio continuou sempre a "vender aulas", vivendo em condições precárias, perdendo um filho nascido prematuro, escrevendo poemas ora desprezados, ora ignorados. Publicou o seu único livro, intitulado Eu (1912), com a ajuda do irmão. O livro foi recebido sem entusiasmo, apesar dos esforços elogiosos de alguns amigos. O poeta sentiu-se incompreendido e ao isolamento físico acabou por corresponder um mais profundo isolamento estético. «No Rio de Janeiro, ao contrário do que havia imaginado, as coisas não se processavam de modo diverso que na Paraíba. Apenas em ponto maior, tudo se reproduzia exactamente como na província» (idem). Em 1914 conseguiu um lugar no Grupo Escolar de Leopoldina, em Minas Gerais. Para aí se transferiu deixando para trás três anos de Rio de Janeiro passados em dez casas de diferentes bairros. Morreu, vítima de uma congestão pulmonar, a 12 de Novembro de 1914. Ficaram os poemas:

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas-
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

2 comentários:

marta caldeira disse...

Já conhecia este senhor. digamos que não é leitura aconselhável a fracos de estomâgo :) e nos dias que correm, agrava a crise, eheheheh

Soledade disse...

Henrique, deixo aqui um soneto do Antônio Adriano de Medeiros,um poeta que conheço há muito dos fóruns de poesia, e que nutre grande admiração por Augusto dos Anjos e Baudelaire. Vale a pena uma visita ao blogue dele: http://antonioadrianomedeiros.blogspot.pt/

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A BELA APODRECIDA

Toda a casa transpirava a podridão
cadavérica da moça morta há três dias...
Era mais bela assim, entregue à mais cega solidão
- as duas órbitas vazias!
Um batalhão de moscas entoava hinos
fúnebres, e ao fundo via-se uma cabeça de cabra.
Um casal de ratos se encontrara nos intestinos
e agora se entregava a uma orgia macabra.
- Ó doce e bela podridão, fonte perpétua de vidas,
sublime sopa com pão de tantas almas perdidas,
por que causas tanto espanto aos homens da polícia,
surpreendendo até mesmo os doutores da perícia?
- É que sobre uma poça encarnada de sangue menstrual
sete anões morcegos realizavam sua Ceia de Natal.

Antônio Adriano de Medeiros