Longe de consensos, apesar dos elogios de Carlos Drummond de Andrade, entre outras autoridades da literatura brasileira, a poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914) foi resistindo ao longo dos tempos como uma das mais lúgubres expressões da natureza humana produzidas em língua portuguesa. Que me recorde, por cá, só António Nobre (1867-1900) se lhe compara, embora o que neste surge como manifestação saudosista, naquele aparece enquanto pessimismo declarado. Distante dos meios culturais urbanos, Augusto dos Anjos nasceu e foi criado em Paraíba do Norte. Viveu numa propriedade familiar, o Engenho Pau d’Arco, até 1908. Foi educado pelo pai, um advogado que faleceu de paralisia cerebral em 1905, e manteve com a mãe, a qual padecia de graves crises nervosas, uma fortíssima ligação. O crescimento do poeta coincidiu, deste modo, com o declínio financeiro da família e a experiência da ruína em sentidos diversos. É natural que este ambiente tenha contribuído para a formação de uma personalidade sombria, a qual encontrará nos versos uma autêntica expressão das dores íntimas, do desalento e da desesperança que o perseguiram toda a vida.
Apelidado pelos colegas de Doutor Tristeza, Augusto dos Anjos foi descrito como histérico, neurasténico, desequilibrado, isolado, misantropo, neurótico, desajeitado, feio, doentio. Estreou-se nos versos ainda adolescente, publicando em jornais da época. O único livro editado em vida apareceu em 1912 com o título Eu. Esta é a 48ª edição da obra, aqui acompanhada por variadíssimos outros poemas (mais de 200 no total), na sua maioria sonetos, fac-símiles dos originais, uma cronologia biográfica, exaustivas notas explicativas, três ensaios de autoria diversa (António Houaiss, Orris Soares, Francisco Assis Barbosa), entre outras curiosidades. A polémica em torno de Eu instaurou-se desde a sua publicação. Considerado por uns de livro aberrante, foi elogiado por outros. Para tal contribuiu o carácter ainda hoje inclassificável desta poesia. Podemos falar de decadentismo sem que Augusto dos Anjos tenha sido um decadente:
DECADÊNCIA
Iguais às linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!
A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!
Como quem quebra o objecto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,
Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último dente
E a armação funerária das clavículas!
Paraíba, 1909
O que aqui está em evidência é o tema mais recorrente na poética de Augusto dos Anjos, ou seja, a “transitoriedade da matéria”, a presença da morte enquanto inescapável destino que tudo subjectiviza ao mesmo tempo que reclama sentido para uma vida, deste modo, tornada absurda. Podemos também evocar o satanismo de Baudelaire ou o onirismo de Edgar Allan Poe (o tema da amada morta aparece várias vezes na poesia do poeta brasileiro), mas nenhum destes conceitos classifica na perfeição o reflexo omnipresente da morte em cada verso de Augusto dos Anjos. O poema inicial de Eu, intitulado Monólogo de Uma Sombra, é uma orgia de vermes, sanguessugas, vírus, larvas, micróbios, bactérias, que evoca as lições de anatomia de Rembrandt. Logo a seguir, num soneto intitulado Agonia de um Filósofo, são chamados à liça os textos do antigo Egipto, a literatura sagrada hindu, Anaximandro de Mileto, Haeckel e Goethe, para daí retirar nenhum consolo. O que a consciência procura reside na própria consciência, o Tempo impondo-se como realidade última e a carne como ontologia derradeira. É a morte quem (co)manda a vida:
O MORCEGO
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede…”
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Nada a fazer, portanto. Não há como escapar aos apelos desesperados da consciência perante a voracidade do verme. Para dentro do poema o poeta traz um léxico improvável de doenças, putrefacções e sombras que não admira ter sido considerado de mau gosto: «Escarrar de um abismo noutro abismo, / Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, / Há mais filosofia neste escarro / Do que em toda a moral do Cristianismo!» (do longo poema As Cismas do Destino). Colocado na posição de ouvinte, imerso entre a realidade e a alucinação (o encontro com Poe é impressionante), o poeta exprime as suas visões; não evita, sem dúvida, filosofar quando nesse filosofar vive adormecida a verdade que o poema acorda. Não é propriamente um visionário, muito menos um místico, é um mártir entre a natureza humana que expõe a dor e desnuda o medo, dando a ver a sua intimidade sem máscaras, mostrando enquanto se mostra, recusando a hipocrisia de uma maquilhagem que pretende disfarçar o que nele, poeta, é verdade e alimento:
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Pau d’Arco, 1906
Perdido em cismas filosóficas, dialogando com as fontes, olhando à sua volta e perscrutando na intimidade das coisas, Augusto dos Anjos não procurou negar ou disfarçar nos seus poemas aquilo que sentia. Por vezes deixa-nos curiosos («Não sou capaz de amar mulher alguma / Nem há mulher talvez capaz de amar-me», in Queixas Noturnas; «E eu nunca sairei desta Sodoma?!», in Insónia; «Mulher nenhuma afagará meu tronco!», in Minha Árvore) sobre as autênticas razões da sua poesia, uma necrofilia mística sem par (leia-se o poema À Mesa), um «poeta do hediondo» (p. 193) capaz de deixar desconfortáveis as próprias pedras sobre as quais seus poemas venham a ser declamados. Mas mais do que a tristeza e uma certa mistificação da dor, o que nele há de verdadeiramente tocante é a sensação de uma vida perdida sem ter sido possível vivê-la, uma sensação implícita em toda a obra e explícita em poemas que, ficando de fora do livro principal, convém manter debaixo de olho:
SENECTUDE PRECOCE
Envelheci. A cal da sepultura
Caiu por sobre a minha mocidade…
E eu que julgava em minha idealidade
Ver inda toda a geração futura!
Eu que julgava! Pois não é verdade?!
Hoje estou velho. Olha essa neve pura!
- Foi saudade? Foi dor? – Foi tanta agrura
Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!
Sei que durante toda a travessia
Da minha infância trágica, vivia,
Assim como uma casa abandonada.
Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas…
Sei que na infância nunca tive auroras,
E afora disto, eu já nem sei mais nada!
Pau d’Arco, 1905
GOZO INSATISFEITO
Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito…
Queimam-me o peito cáusticos de fogo,
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o círculo infinito.
Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciabilidade desse gozo!
Pau d’Arco, 1906
1 comentário:
É um poeta, sem a menor sombra de dúvida...um poeta da descrença que talvez estivesse vivo por amor às letras
Sandra Viola
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