quarta-feira, 18 de julho de 2012

DA VIDA DELA

Ela usava pernas.

Usava saias, curtas, por causa das pernas.

As pernas eram brancas, por causa dos braços dela, e dos seios: brancos, brancos.

À noite era mais branca ainda. A noite é que era negra, como a alma dela.

A alma dela queimou-se muitas vezes: os pais eram tão baixinhos, tão estúpidos.

Mas queixava-se nunca, ela.

O pai dela era canalizador. Canalizava o seu rancor para a mãe dela. E para ela.

A mãe dela era canalizada para a telenovela.

Havia de subir na vida, ela, como estratagema para equipar os pais com asas. E com casas: havia de ser arquitecta! Se as casas voassem os pais seriam menos baixinhos, menos estúpidos.

Um dia o pai entrou pelo cano adentro e desapareceu.

A mãe entrou pela telenovela adentro e desapareceu.

Foi assim que ela saiu de casa. Sozinha, sem ninguém. Ou seja: branca.

Na rua, por momentos, respirou feliz. Mas depois chorou que se fartou e assoou o nariz.

Estava numa rua em que passavam carros negros.

Ela via os carros passar. Não eram anjos, eram carros. Se fossem anjos haviam de dirigir-se ao palácio do Rilke, aquele senhor que falava de anjos sempre que tinha a barriga cheia.

Ela nem sequer tinha fome. Nem asas, só as pernas. As pernas brancas do costume.

Parou um carro negro e uma boca aproximou-se dela:

- Entras?

Ela entrou. E o carro desapareceu por fora, e por dentro era outra coisa.

Já na casa, o senhor careca pôs as mãos nas pernas dela. No ar o cheiro do incenso de canela.

Ela passou as mãos nas pernas do senhor. E disse-lhe:

- Podemos conversar, prometo que não te conto a história da minha vida.

O senhor achou estranho:

- Conversar?

- Sim - disse ela. - Podemos ser amigos, ou quase.

- E o sexo? - perguntou o senhor, atrapalhando-se como um novato.

- Pois, não acho boa ideia conversar. Vamos comer, e se tiveres música escolhe alguma bem-disposta.

- Eu não vim aqui para... - ia a dizer o senhor, mas arrependeu-se.

O senhor tornou a vestir as calças. Foi à cozinha e abriu o frigorífico. Tinha comida enlatada, sopa, alguns iogurtes. Tirou estas coisas e pô-las em cima da mesa.

Ela comeu a sopa e dois iogurtes. Ele comeu sopa e ficou a olhar para ela.

E não houve conversas metafísicas, nem investigações físicas. Foram para a sala e puseram-se a ouvir música. Ela dançou, ele também dançou.

Ficaram cansados e o senhor disse que ela podia dormir no outro quarto.

No dia seguinte, quando o senhor acordou, ela já não estava lá. E o senhor ficou preocupado, porque queria voltar a vê-la.

À mesma hora do dia anterior o senhor voltou a passar na mesma rua. À mesma hora do dia anterior, ela entrou num carro negro, metendo primeiro a sua perna esquerda, branca, e depois a sua perna direita... branca. Reparou que se dirigiam para um sítio diferente. Logo percebeu: aquele senhor não era o do dia anteiror.

Saíram do carro e pouco depois entraram na casa do segundo senhor. Estava lá o senhor do dia anterior.

- O que é isto? Um assalto? - perguntou o segundo senhor.

- Não, esteja descansado - respondeu o primeiro senhor. - Estava à procura dela, e vi-a passar no seu carro. E depois, é só isto... antecipei-me!

Desta vez foi ela a escolher a música. Ainda havia sopa no frigorífico, mas ela resolveu tirar uns pastéis de bacalhau do congelador. Pôs a água a ferver para o arroz. Quando regressou à sala, os dois senhores ainda estavam lá.

Depois conversaram os três. Mas não conversaram muito. Beberam um licor de poejo.

Pareciam amigos. Mas a certa altura ela disse:

- Vou sair, quero ver o sol nascer. Hoje quero estar sozinha. É a minha segunda noite fora de casa.

- Podemos ir contigo - disseram os dois senhores.

- Voltaremos a encontrar-nos, sim. Mas hoje vou sozinha.

Saiu de casa e dirigiu-se para as docas.

Ouviu o som das gaivotas. O cheiro a peixe à passagem na lota.

Os primeiros barcos chegavam da pescaria da noite com as redes cheias. O mar estava calmo, nem as ondas quebravam.

A ondulação tocava na areia com o impulso da água a conhecer as pedras, mudando-as de lugar.

Uma brisa afastou-lhe os cabelos e ela sentiu frio. Cruzou os braços sobre o peito e encolheu a cabeça entre os ombros.

Depois pensou que na terceira noite começaria a cobrar 100 euros, só pela companhia, já que tencionava continuar virgem. Tinha 15 anos acabados de fazer. Precisava de juntar dinheiro para continuar a estudar. Não se tratava de acreditar no amor. Era um problema prático (a falta de dinheiro) mas não pretendia fazer sexo com estranhos.

A vida dos peixes é mais bela que a dos pescadores, pensou ainda, mas achou que só estava a pensar nisto por se tratar de uma imagem poética.

Estava com frio e a vida era dela.




Rui Costa, in Da Vida Bela, vários autores, coordenação de Sara Monteiro, Fundação Odemira, Setembro de 2010, pp. 17-24.

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigada Henrique.Não conhecia este texto.beijinhos.PB