segunda-feira, 9 de julho de 2012

O HOMEM CORVO

Tenho há muito a mania de que grande parte daquilo em que nos tornamos advém de um imaginário alimentado, desde muito cedo, pelas histórias ouvidas na infância. Sinto, por isso, enormes dificuldades digestivas perante os cenários de princesas e de bailarinas estupidamente promovidos junto do público infanto-juvenil. Também nunca fui fã dos chamados livros de aventuras, talvez por julgá-los demasiado inverosímeis. As grandes aventuras acontecem sempre aos outros, pensava eu, quando era puto, com a cabeça enfiada entre as orelhas e uma existência tristemente entediante. É verdade que tive os meus dias, pese embora o facto de terem sido dias quase sempre castrados por uma família protectora e previdente (sou o mais novo de três irmãos). Os amigos imaginários surgiram-me tarde na vida, quando percebi serem metáforas de projecções vindas dos lugares íntimos que a consciência gera algures no mais sombrio dos seus recantos. As minhas filhas devem achar-me chato quando lhes digo não acreditar no Pai Natal, mas nunca me ouvirão menosprezar o poder de uma boa metáfora. É o caso de O Homem Corvo, uma personagem engendrada por David Soares cuja principal característica é uma hábil capacidade para permutar lágrimas por corações. Sucede que para manhoso, manhoso e meio. E o Homem Corvo acaba com uma maçã no lugar do coração, ainda por cima uma maçã habitada por um bicho. Este livro ocupa um lugar especial no segmento da literatura infantil, porque ousa escapar às redundâncias de um mundo ingénuo e inocente, penetrando nas dimensões obscuras da fábula tradicional. As ilustrações de Ana Bossa, concebidas a três dimensões, foram fotografadas por Nuno Bouça. Garante-se que não há ali qualquer tratamento digital da imagem, o que torna ainda mais fascinante cada uma das páginas deste pequeno livro. O tom respeita o universo nebuloso do autor, que despreocupadamente e sem freios morais introduz vermes, grutas fundas, teias de aranha e lagos de água a ferver numa narrativa de contornos góticos. Ideal para quem procura alguma coisa que caiba no lugar do coração, nem que seja uma maçã com bicho (corruptela, talvez, das clássicas maçãs envenenadas que sempre nos fizeram desconfiar de ofertas sem troco).

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