quarta-feira, 4 de julho de 2012

PORTUGAL: NORTE DE ÁFRICA

Camarada Van Zeller, a austeridade tem-me obrigado a uma vida de trabalho sem direito a descanso. Peço-lhe, por isso, perdão. Eu sei que não devia ter tirado uma licenciatura como deve ser, todas as cadeiras feitas e um estágio pedagógico a preço d'ouro em época de crise. Foi um erro, reconheço-o. Devia ter investido na amizade, devia ter assumido o compromisso de uma existência inteiramente dedicada à coisa pública, devia ter sido mais amigo de meu amigo. O que me pagam para que eu possa fazer frente às despejas não deixa margem para dúvidas, eu nunca devia ter queimado os neurónios a estudar Aristóteles, São Tomás de Aquino, Leibniz, Espinosa, Kant e Hegel. Dez anos de docência, oito dos quais a recibo verde, sem direitos hoje considerados privilégios e sem privilégios hoje considerados atentados à dignidade humana, foram a primeira consequência de um erro estratégico irremediável.
Eu devia ter seguido os bons exemplos do Ministro Relvas, aquele que anda a telefonar para as redacções dos jornais ameaçando os jornalistas com boicotes e denúncias da vida privada; eu devia ter feito uma carreira de lacaio, devia ter servido a nação propondo negócios do Estado em favor de empresas privadas geridas por amigos; eu devia ter apostado numa longa experiência política e em vários cargos de relevo económico, criando laços familiares que me garantissem uma boa reforma. Um curso de Filosofia terminado com média de 14,37 valores para quê, se podia ter feito um curso de Ciência Política num ano, a créditos, com classificação final de 11 valores, e acabado como ministro? Eu podia ser ministro, podia dar-me ao luxo de mandar às urtigas os autarcas do país, como a da Justiça, podia dedicar-me a ameaçar jornalistas, como o dos Assuntos Parlamentares, podia dizer coisas, como o da Economia, e receber no fim do mês um vencimento de acordo com a categoria dos cargos exercidos (ao contrário do salário de enfermeiro que recebo todos os meses).
Também eu para mais não sirvo do que para limpar o cu da nação. Eu podia ser, por exemplo, que bons exemplos não nos faltam, o bom amigo de seu amigo José Luís Arnaut, que depois de ter contribuído para o esclarecimento dos portugueses quanto à história da Grécia se viu promovido a administrador da REN, curiosamente cliente do seu escritório de advogado. Há sempre curiosidades destas na distribuição destes cargos. Ainda há quem, ingenuamente, fale de obscenidades nestes bons exemplos. Camarada Van Zeller, obsceno é levantarmo-nos diariamente para ir trabalhar, obrigarmos os nossos filhos a estudar; obsceno é sermos boas pessoas, obsceno é sermos honestos, porque tudo isso nos transforma em autênticas aberrações face aos bons exemplos chegados de cima. Eu podia ser um bom exemplo.
Quando a moral das gentes do Estado fica claramente exposta, sem que se toque um milímetro que seja na sua (in)rectidão, que nos resta? Já sabemos que estes amigos de seu amigo continuarão as suas carreiras com o beneplácito de eleitores embrutecidos e de uma Justiça inoperante, já sabemos que Relvas pode continuar a ser um trafulha, Arnaut um oportunista desavergonhado e assim sucessivamente, que ninguém está para se chatear muito. Num país de criminosos legais é assim. E sabemos que os maridos frustrados continuarão a carregar sobre suas mulheres, quando poderiam investir um pouco da sua raiva carregando nestes ladrões de colarinho branco que vão passando incólumes pelo terreno dos seus crimes. Mais austeridade, menos austeridade, mais imposto, menos imposto, mais BPN, menos BPN, mais Quinta da Coelha, menos Quinta da Coelha, cá andaremos labutando, estúpidos e explorados, como sua eminência o Presidente Cavaco de Todos Nós: sem dinheiro para as despesas. E, ainda por cima, governados pelo Primeiro-ministro mais africano de todos. Ele próprio o disse, não o desmentimos.

2 comentários:

lmptt disse...

Sem dúvida partilho do mesmo sentir do autor deste texto. Também eu, após estudos concluídos, mais de 40 anos de trabalho e 60 de vida baseada na honestidade pessoal e sentido de justiça universal, tendo contribuído para o estoiro do Estado Novo, me sinto profundamente arrependido por só agora entender que afinal sou apelidado de estúpido e explorado pelos "novos" velhos que têm mandado politicamente neste Portugal. De facto, devia ter feito tudo para acabar com eles à nascença. Disso me arrependo.

hmbf disse...

O autor deste texto é um androide, não sente.