domingo, 12 de agosto de 2012

EDUARDO GUERRA CARNEIRO





Passados 70 anos sobre o nascimento e mais de 50 sobre o primeiro livro — O Perfil da Estátua (1961, col. Sílex) —, Eduardo Guerra Carneiro permanece esquecido. Seria de supor uma reunião da obra ou algo do género em nome, vá lá, de uma memória menos circunstancial, mas este é um país de poetas com memória curta e vistas grossas. Natural de Chaves, onde viu pela primeira vez a luz do dia em Outubro de 1942, Eduardo Guerra Carneiro frequentou as faculdades de Letras do Porto e de Lisboa sem nunca ter concluído qualquer curso. “4º ano incompletíssimo de História”, ao que parece trocado por uma dedicação precoce ao jornalismo e aos versos. Escreveu para O Século, Se7e, Portugal Hoje, Match Magazine, República, TV Guia, O Primeiro de Janeiro, ABC, Diário Popular, Europeu, Tempo, Agenda Cultural da Câmara de Lisboa, tendo sido, por duas vezes, distinguido com o prémio Júlio César Machado. As suas crónicas, «um diário de bordo na constante, mas custosa, procura dos outros, neste difícil ofício de viver», ficaram registadas em dois volumes, ambos editados pela Teorema: O Revólver do Repórter (1994) e Outras Fitas (1999). Além do supracitado, publicou os livros de poesia Corpo Terra (1966, col. Espaço), Algumas Palavras (1969, Nova Realidade), Isto Anda Tudo Ligado (1970, Ulmeiro), É Assim Que se Faz História (1973, Assírio & Alvim), Como Quem Não Quer a Coisa (1978, & etc.), Dama de Copas (1981, &etc.), Contra a Corrente (1988, &etc.), Profissão de Fé (1990, Quetzal), Lixo (1993, &etc.) e A Noiva das Astúrias (2001, &etc.). Diz quem o conheceu que «era boémio, mas não era da boémia». Sobre a sua poesia, escreveu Manuel João Gomes: «poesia em prosa, prosa de poeta incorrigível, melancólico, irónico, um tudo-nada romântico. Poesia às vezes jornalística, quotidiana e quotinocturna, em cima do acontecimento. Antes, durante e depois da ressaca. Confissões, recordações da terra natal, paisagens, retratos». Vejamos:

AUTO-RETRATO

Quantas horas não choras a pensar
em ti — quando ando, desando,
neste viver sem mim.
Quantos anos sem tino. De mim
este cantar desencantado — assim.
Embora os dias me afastem já de ti
procuro saber do teu espaço,
nas casas brancas onde o azul desmaia. Sinal
de outro tempo em que ainda rias,
espaço meu. Afinal alteras, aterras, ó desenterrado.
Finges, desarmas, com teu gosto azedo. Procuras,
já vives, nas verdes veredas. Mas não sabes,
nem queres, do teu ao meu, essa coisa
chamada amor.


In Contra a Corrente, com capa e desenhos de Carlos Ferreiro, & etc., Setembro de 1988, p. 37.


A BARBA

A barba é o meu gato. Afago-a
neste jeito de quem passa os dedos
pelo dorso de um bichano. Eu sei
que estou a tocar num tigre: a barba
encrespa-se, revolve-se mesmo.
Ondas, campos de milho, searas,
também conhecem afago igual.
Mas este gato rebelde, a minha barba
apenas, é agora tudo a que me prendo.
Mestres já me dizem do excesso
de assim me virar para dentro.
Não! É para fora! Mora a barba
noutras eras, noutro espaço. É ela
que me afaga a mim: a última ternura.


In Profissão de Fé, capa de Rogério Petinga, Quetzal Editores, 1990, p. 28.


ESPELHOS E VULCÕES IV

Dos vulcões gostava de falar, em tom de arrepio, como se um vento de fogo cortasse de súbito os sonhos.

São esses os vulcões do imaginário, acesos quando menos se espera, ao olharmos o negro borralho que julgamos ser apenas cinza morna.

Já voei por cima de um vulcão, na realidade ou na noite dos prodígios. Arrisquei a pele ao provar os álcoois das profundezas, lava espessa a transbordar das taças.

Aos vulcões misturo os espelhos, num retrato imperfeito de algumas ousadias. São violentos os gritos e ressoa o clamor de multidões estilhaçando os vidros dos tiranos.

Caem os muros, revolvem-se as fronteiras. Espantados com a sua força, com o poder ao alcance das mãos, os homens imprimem neste novo tempo as suas impressões digitais, tantas vezes manchadas pelo próprio sangue ainda derramado.

Volto então aos vulcões de modo mais lírico para não me deixar tombar nas ravinas do medo. São, afinal, encostas de prazer, quando os olhamos com a firmeza de tudo querer mudar.

Há vulcões no teu olhar, dizia o homem para o espelho da parede. E explodia então o esmalte e os vidros rompiam os veludos e alcatifas.

In Lixo, capa e vinhetas de Carlos Ferreiro, &etc., Outubro de 1993, pp. 39-40.


JAZES, POETA

Jazes, poeta, em teu discurso
pífio quando tentas poéticas
alheias. A meias vou tentar,
e a ti tentar dar melhor ar,
outra tristeza alegre. Jazes poeta,
mas vá lá!, vá lá!, ainda resolves
as palavras cruzadas desta vida.
Vidinha airada, como assim convém
a quem no campo tem um batatal.
Mas, olha lá bem!, bens ao luar
não tens, pois na voragem foram
eirôs, pinhais e bacelinhos. O canastro
vigilante — andor! — também se foi.
Trovas de uma história — tanto lastro!


In A Noiva das Astúrias, capa e vinte e oito desenhos de Carlos Ferreiro, &etc., Agosto de 2001, p. 45.


Eduardo Guerra Carneiro está representado em diversas antologias. Traduziu para português o romance de Edgar Allan Poe Aventuras de Arthur Gordon Pym. Suicidou-se numa madrugada de 2004, no Bairro Alto, onde então residia.

5 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Que desperdício. é o que sinto sempre que se esvai uma vida de alguém com valor. Agora fez-me lembrar o Rui Costa.

hmbf disse...

Olá Claudia. Obrigado pelo comentário. Bom Domingo.

manuel a. domingos disse...

bem lembrado

ZMB disse...

estou solidário. é o pouco que posso ajudar.

hmbf disse...

também podemos todos assaltar um supermercado