Os movimentos estão sempre começados antes de começar, nas individualidades que os começam juntas.
Álvaro de Campos
Ainda que seja de extrema importância a reunião da Prosa de Álvaro de Campos, é um manifesto exagero, como fazem os seus editores, considerar este «um acontecimento editorial tão relevante quanto a primeira publicação do Livro do Desassossego». O exagero atinge contornos hilariantes quando se coloca na mesma dimensão a prosa do engenheiro e o livro-projecto de Bernardo Soares. O engenheiro foi essencialmente poeta, como prosador deixou-nos ensaios e manifestos, notas avulsas de carácter especulativo, farpas e polémicas, alguma correspondência. Está tudo aqui reunido, até ver, em várias secções que podemos resumir a dois grandes grupos: a prosa não publicada e a prosa publicada em vida. No primeiro dos grupos, encontramos um conjunto de textos de interesse diverso onde aquele que é, muito provavelmente, o mais popular dos heterónimos de Fernando Pessoa foi ensaiando discursos, dialogando consigo próprio e com os outros do seu círculo (não deixam de ser o mesmo) sobre estética, política, epistemologia, numa inconstância derivativa que se aproxima, por vezes, do puro delírio criativo. A separação das artes, as relações entre arte, ciência e filosofia, a natureza da Poesia, parecem interessar a Álvaro de Campos mais do que quaisquer outros temas. Mas interessam num registo auto-justificativo que sugere uma personalidade megalómana e sincrética, onde o epicurismo se encontra com o empirismo e este com o niilismo e todos eles num só corpo, intersectivo, a que talvez devamos chamar sensacionismo. No entanto, evitemos generalizações: «Quando me designei como “sensacionista” ou “poeta sensacionista” não quiz empregar uma expressão de escola poetica (santo Deus! Escola!); a palavra tem um sentido philosophico» (p. 131). Tal como está errado chamar futurista ao autor da Ode Triunfal, por muito acima desse movimento termos que subir para o compreendermos, também será redutor considerá-lo sensacionista num sentido limitado do termo. A megalomania de Álvaro de Campos é proporcional à sua grandeza, o que, de certo modo, explica (e até nega) essa megalomania. Por isso se revelam tão importantes as Notas para a recordação do meu mestre Caeiro aqui compiladas. Temos aí acesso a uma ampla dramatização da personalidade que compreende toda a heteronímia pessoana. Embora assuma Caeiro como mestre, criticando Ricardo Reis e debatendo-se com Fernando Pessoa — «O Fernando Pessoa sente as cousas mas não se mexe, nem mesmo por dentro» (p. 99) —, ou até com o “malogrado” António Mora, Álvaro de Campos surge como o demiurgo (mais correcto será chamar-lhe médium) que organiza a teia de relações e de diferenciações entre as várias personalidades da obra Pessoa. Porque o EU do poeta é, neste sentido, uma obra que se constrói a partir da assumpção das oposições e das contradições que dão forma ao mundo, ou seja, é uma assimilação do OUTRO. A identidade é alteridade. É inevitável a tentação de supor por debaixo deste edifício uma qualquer sustentação patológica, mas o que ele tem de apurada reflexão estética revela-se na extrema coerência de textos essenciais tais como o Ultimatum, publicado no n.º1 da Portugal Futurista (1917), ou os Apontamentos Para Uma Esthetica Não-Aristotélica, vindos a lume na revista Athena (1924). Nesses textos, Álvaro de Campos reivindica um «artista cuja arte seja uma Synthese-Somma»: «O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais generos com mais contradições e dissimilhanças» (p. 158). Outra coisa não fez, claro está, Fernando Pessoa nas pessoas dos seus múltiplos heterónimos. Álvaro de Campos parece ser, assim, o guerreiro convocado para a defesa do Criador na batalha da legitimação estética de uma obra. Opõe-se a tudo e a todos, incluindo a si próprio, realizando tudo e todos, tendo por certo que «a unica compensação moral que devo à literatura é a gloria futura de ter escrito as minhas obras presentes» (p. 267). Um profeta, portanto.
Álvaro de Campos
Ainda que seja de extrema importância a reunião da Prosa de Álvaro de Campos, é um manifesto exagero, como fazem os seus editores, considerar este «um acontecimento editorial tão relevante quanto a primeira publicação do Livro do Desassossego». O exagero atinge contornos hilariantes quando se coloca na mesma dimensão a prosa do engenheiro e o livro-projecto de Bernardo Soares. O engenheiro foi essencialmente poeta, como prosador deixou-nos ensaios e manifestos, notas avulsas de carácter especulativo, farpas e polémicas, alguma correspondência. Está tudo aqui reunido, até ver, em várias secções que podemos resumir a dois grandes grupos: a prosa não publicada e a prosa publicada em vida. No primeiro dos grupos, encontramos um conjunto de textos de interesse diverso onde aquele que é, muito provavelmente, o mais popular dos heterónimos de Fernando Pessoa foi ensaiando discursos, dialogando consigo próprio e com os outros do seu círculo (não deixam de ser o mesmo) sobre estética, política, epistemologia, numa inconstância derivativa que se aproxima, por vezes, do puro delírio criativo. A separação das artes, as relações entre arte, ciência e filosofia, a natureza da Poesia, parecem interessar a Álvaro de Campos mais do que quaisquer outros temas. Mas interessam num registo auto-justificativo que sugere uma personalidade megalómana e sincrética, onde o epicurismo se encontra com o empirismo e este com o niilismo e todos eles num só corpo, intersectivo, a que talvez devamos chamar sensacionismo. No entanto, evitemos generalizações: «Quando me designei como “sensacionista” ou “poeta sensacionista” não quiz empregar uma expressão de escola poetica (santo Deus! Escola!); a palavra tem um sentido philosophico» (p. 131). Tal como está errado chamar futurista ao autor da Ode Triunfal, por muito acima desse movimento termos que subir para o compreendermos, também será redutor considerá-lo sensacionista num sentido limitado do termo. A megalomania de Álvaro de Campos é proporcional à sua grandeza, o que, de certo modo, explica (e até nega) essa megalomania. Por isso se revelam tão importantes as Notas para a recordação do meu mestre Caeiro aqui compiladas. Temos aí acesso a uma ampla dramatização da personalidade que compreende toda a heteronímia pessoana. Embora assuma Caeiro como mestre, criticando Ricardo Reis e debatendo-se com Fernando Pessoa — «O Fernando Pessoa sente as cousas mas não se mexe, nem mesmo por dentro» (p. 99) —, ou até com o “malogrado” António Mora, Álvaro de Campos surge como o demiurgo (mais correcto será chamar-lhe médium) que organiza a teia de relações e de diferenciações entre as várias personalidades da obra Pessoa. Porque o EU do poeta é, neste sentido, uma obra que se constrói a partir da assumpção das oposições e das contradições que dão forma ao mundo, ou seja, é uma assimilação do OUTRO. A identidade é alteridade. É inevitável a tentação de supor por debaixo deste edifício uma qualquer sustentação patológica, mas o que ele tem de apurada reflexão estética revela-se na extrema coerência de textos essenciais tais como o Ultimatum, publicado no n.º1 da Portugal Futurista (1917), ou os Apontamentos Para Uma Esthetica Não-Aristotélica, vindos a lume na revista Athena (1924). Nesses textos, Álvaro de Campos reivindica um «artista cuja arte seja uma Synthese-Somma»: «O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais generos com mais contradições e dissimilhanças» (p. 158). Outra coisa não fez, claro está, Fernando Pessoa nas pessoas dos seus múltiplos heterónimos. Álvaro de Campos parece ser, assim, o guerreiro convocado para a defesa do Criador na batalha da legitimação estética de uma obra. Opõe-se a tudo e a todos, incluindo a si próprio, realizando tudo e todos, tendo por certo que «a unica compensação moral que devo à literatura é a gloria futura de ter escrito as minhas obras presentes» (p. 267). Um profeta, portanto.
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