quarta-feira, 15 de agosto de 2012

PROSA DE ÁLVARO DE CAMPOS

Os movimentos estão sempre começados antes de começar, nas individualidades que os começam juntas.
Álvaro de Campos

Ainda que seja de extrema importância a reunião da Prosa de Álvaro de Campos, é um manifesto exagero, como fazem os seus editores, considerar este «um acontecimento editorial tão relevante quanto a primeira publicação do Livro do Desassossego». O exagero atinge contornos hilariantes quando se coloca na mesma dimensão a prosa do engenheiro e o livro-projecto de Bernardo Soares. O engenheiro foi essencialmente poeta, como prosador deixou-nos ensaios e manifestos, notas avulsas de carácter especulativo, farpas e polémicas, alguma correspondência. Está tudo aqui reunido, até ver, em várias secções que podemos resumir a dois grandes grupos: a prosa não publicada e a prosa publicada em vida. No primeiro dos grupos, encontramos um conjunto de textos de interesse diverso onde aquele que é, muito provavelmente, o mais popular dos heterónimos de Fernando Pessoa foi ensaiando discursos, dialogando consigo próprio e com os outros do seu círculo (não deixam de ser o mesmo) sobre estética, política, epistemologia, numa inconstância derivativa que se aproxima, por vezes, do puro delírio criativo. A separação das artes, as relações entre arte, ciência e filosofia, a natureza da Poesia, parecem interessar a Álvaro de Campos mais do que quaisquer outros temas. Mas interessam num registo auto-justificativo que sugere uma personalidade megalómana e sincrética, onde o epicurismo se encontra com o empirismo e este com o niilismo e todos eles num só corpo, intersectivo, a que talvez devamos chamar sensacionismo. No entanto, evitemos generalizações: «Quando me designei como “sensacionista” ou “poeta sensacionista” não quiz empregar uma expressão de escola poetica (santo Deus! Escola!); a palavra tem um sentido philosophico» (p. 131). Tal como está errado chamar futurista ao autor da Ode Triunfal, por muito acima desse movimento termos que subir para o compreendermos, também será redutor considerá-lo sensacionista num sentido limitado do termo. A megalomania de Álvaro de Campos é proporcional à sua grandeza, o que, de certo modo, explica (e até nega) essa megalomania. Por isso se revelam tão importantes as Notas para a recordação do meu mestre Caeiro aqui compiladas. Temos aí acesso a uma ampla dramatização da personalidade que compreende toda a heteronímia pessoana. Embora assuma Caeiro como mestre, criticando Ricardo Reis e debatendo-se com Fernando Pessoa — «O Fernando Pessoa sente as cousas mas não se mexe, nem mesmo por dentro» (p. 99) —, ou até com o “malogrado” António Mora, Álvaro de Campos surge como o demiurgo (mais correcto será chamar-lhe médium) que organiza a teia de relações e de diferenciações entre as várias personalidades da obra Pessoa. Porque o EU do poeta é, neste sentido, uma obra que se constrói a partir da assumpção das oposições e das contradições que dão forma ao mundo, ou seja, é uma assimilação do OUTRO. A identidade é alteridade. É inevitável a tentação de supor por debaixo deste edifício uma qualquer sustentação patológica, mas o que ele tem de apurada reflexão estética revela-se na extrema coerência de textos essenciais tais como o Ultimatum, publicado no n.º1 da Portugal Futurista (1917), ou os Apontamentos Para Uma Esthetica Não-Aristotélica, vindos a lume na revista Athena (1924). Nesses textos, Álvaro de Campos reivindica um «artista cuja arte seja uma Synthese-Somma»: «O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais generos com mais contradições e dissimilhanças» (p. 158). Outra coisa não fez, claro está, Fernando Pessoa nas pessoas dos seus múltiplos heterónimos. Álvaro de Campos parece ser, assim, o guerreiro convocado para a defesa do Criador na batalha da legitimação estética de uma obra. Opõe-se a tudo e a todos, incluindo a si próprio, realizando tudo e todos, tendo por certo que «a unica compensação moral que devo à literatura é a gloria futura de ter escrito as minhas obras presentes» (p. 267). Um profeta, portanto.

Sem comentários: