quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A CONFIANÇA EM SI

Um autor perigoso é aquele que nos cativa pela beleza das palavras a ponto de lhe perdermos o fio às ideias. Pode acontecer com Platão como facilmente sucede com Vieira, aconteceu-me com Santo Agostinho na mesma medida em que o senti, com o passar dos anos, na obra de outro Agostinho, o da Silva. Exemplos não faltam. Ralph Waldo Emerson (1803-1882) é mais um. Lemo-lo com agrado extremo. Mas parados sobre os pensamentos, ficamos hesitantes e intrigados. Chega a ser inquietante o quanto nos revemos em fragmentos do seu pensamento, para logo descrermos por completo de algumas das suas conclusões. O seu transcendentalismo ideológico e, por isso, utópico e, também por isso, facilmente desmontável, não pode ser reduzido a uma mera profissão de fé. Emerson absorveu as tradições dos indígenas norte-americanos e soube adaptá-las à realidade do seu tempo, não sendo, claro está, pela sua distanciação da ortodoxia católica que nos afastamos dele. Antes pelo contrário. Nesse sentido, A Confiança em Si é um ensaio deveras cativante, onde fica clara a intenção humanista do autor d'elevar o indivíduo a uma circunstância, por assim dizer, demiurgica. Não obstante, as suas ideias são difíceis de assimilar numa época onde o indivíduo se faz cada vez mais numa relação contraceptiva com o outro e com a natureza, ou seja, com o mundo abetumado que o rodeia. A liberdade que Ralph Waldo Emerson enfatizava, num mundo de escravos evidentes, pode ser a mesma que enfatizamos hoje, num mundo de escravos implícitos; mas a forma como se revela, constrói, afirma, nada tem que ver com esse tempo onde as forças oponentes, o inimigo, eram objectivas. Repare-se como ao longo dos tempos o capitalismo logrou tornar o homem-escravo inimigo de si próprio, transferindo a responsabilidade das suas opções para um outrem abstracto (governo, instituições, associações, grupos, etc.) e conformando-o às exigências que o conforto lhe coloca diariamente. A autoconfiança torna-se, deste modo, numa aprendizagem para a acção em conformidade, ou seja, numa autoeducação para o conformismo, para a produtividade, para o consumismo. A vontade de poder vê-se substituída por uma vontade de consumir, de aglutinar, de absorver. A autoconfiança de Emerson era a mesma que Sócrates promovia, hoje arrumada na estante da indiferença, no armário da resignação, na arca congeladora do comodismo tão facilmente ridicularizável quando nos metemos a observar as correntes de indignação cibernética com direito a sofá e pipocas. As amizades sem cheiro de hoje nada têm que ver com a amizade exposta pelo filósofo norte-americano num dos seus ensaios dedicado ao tema, a amizade absoluta e incondicional que se confunde com o amor e se alicerça na Verdade e na Ternura. Por isso deixou de ser Amizade, diluindo-se antes num sem fim de amizades gasosas, fúteis, facilmente descartáveis. Não que por agora ser assim estivesse Emerson errado. Com ele sublinhamos este caminhar solitário no mundo: «Amigos, tais como os desejamos, são sonhos e fábulas» (p. 176). O que nos parece evidente é não haver lugar na realidade para essa fábula, sendo difícil resistir à tentação de pensar que, provavelmente, outra amizade não há senão estas amizades egoístas do indivíduo dito independente num mundo onde a autonomia se mede pelo conjunto de electrodomésticos disponibilizados em habitação própria. O optimismo do autor de Self-Reliance contrasta com o pessimismo incutido pela actualidade e, já agora, pela história contemporânea. Daí que ao escutarmos nas suas palavras os ecos de Epicuro e ao assimilarmos algumas das suas verdades como sendo a mais fiel expressão dos nossos sentimentos, desconfiemos do registo missionário que caracteriza os textos. Tendo sido um viajante, pode afirmar com propriedade que «viajar é o paraíso dos tolos» (p. 30). E até entendemos a sua noção de domesticidade, à luz de um pensamento erigido a partir da relação do homem com a Natureza. O homem só de Emerson é o homem autónomo, auto-suficiente, livre, expressão material de uma realidade sublime e transcendente que assume forma na Natureza. É o homem resistente, capaz, poético, no sentido de criador, fazedor. A sua teoria da Natureza e do homem deve ser perspectivada a partir de um sentimento utópico do mundo, uma fé incomensurável no indivíduo enquanto construtor de um mundo melhor. As nossas dúvidas, legitimadas pela realidade, não negam essa perspectiva, apenas desviam o olhar no sentido de um quadro ruinoso que não pode ser negado. Por isso continuamos a preferir o «nomadismo intelectual» (p. 126) de outras tribos ao «espírito caseiro» deste homem domesticado, ocidental. De resto, este «espírito caseiro» parece-nos deveras contraditório com a «filosofia de mobilidade e fluidez» invocada noutras paragens do mesmo autor. A Confiança em Si, A Natureza e Outros Ensaios foi publicado pela Relógio d’Água, com tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira e José Luís Costa, em Outubro de 2009. Curiosamente, dos ensaios coligidos (sete), Montaigne, ou o Céptico é o nosso preferido.

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