O maior problema do humorista é quando ele próprio se
transforma numa anedota. Veja-se o caso de Herman José, um tipo que nos fazia
rir quando se limitava a ser humorista e começou a causar-nos asco quando se
transformou numa piada de si próprio. Vi-o recentemente num vídeo a comentar a
actualidade e o suicídio de Dimitri Christoulas, o reformado grego que não
quis deixar dívidas aos filhos e se matou a poucos metros do Parlamento grego. Herman desvalorizou o
gesto, insinuando que provavelmente se tratava de um homem que estava a tentar
pagar uma casa na ilha de Santorini e que se calhar ia a meio do pagamento de
uma carrinha nova que tinha oferecido ao neto e que se calhar estava cheio de
dívidas que não conseguia suportar… Ou seja, Herman avaliou o gesto daquele
homem tomando como padrão a sua própria vida. E foi acrescentando uma série de
asneiras sobre empreendedorismo, naquele discurso vazio de “arregaça
as mangas e vai trabalhar”. A gente olha para o percurso de Herman José e não
se espanta que ele pense assim. No entanto, também eu por vezes não escapo a
uma avaliação do mundo em função da minha própria realidade ou daquela que me é
mais próxima. Penso, por exemplo, na mais crescida das minhas irmãs. Herman
nasceu e cresceu em Lisboa, a minha irmã nasceu e cresceu numa aldeia isolada;
com quatro anos de idade, Herman protagonizava os filmes do pai; com quatro
anos de idade, a minha irmã aguardava o telefonema do pai colocado em
Moçambique na guerra do ultramar; aos cinco anos, Herman entrou para a Escola
Alemã de Lisboa; a minha irmã entrou para a escola pública lá da aldeia; Herman
teve resultados pouco lineares, a minha irmã foi sempre excelente aluna; Herman
ainda estudava quando comprou a sua primeira viola-baixo, a minha irmã ainda estudava quando começou a trabalhar para que fosse possível aos meus pais
sustentarem-lhe os estudos; Herman conheceu a vida artística através da música,
a minha irmã conheceu a austeridade através de uma vida de privações; quando se
colocou a hipótese do serviço militar, Herman optou pela nacionalidade alemã e
preparou-se para zarpar. O serviço militar da minha irmã foi outro, na
Universidade de Lisboa a estudar e a trabalhar, contando os tostões, para
conseguir levar até ao fim a formação ambicionada. Ao contrário de Herman, a
maioria dos portugueses não tinha/não tem como fugir à realidade do país. E é isto que
ele nunca entenderá, porque custa admitir que as circunstâncias também fazem os
homens. Basta ler um manual de sociologia do 12º ano para o entender. Não
importa prosseguir nestas vidas comparadas, importa apenas entender algo tão
simples como isto: quando nascemos, não nascemos com as mesmas oportunidades.
Uma sociedade mais justa é aquela que proporciona a todos, pelo menos,
oportunidades, não condenando os desfavorecidos a uma existência ou miserável
ou limitada ou permanentemente
desfavorável. Não se trata apenas, pois, de arregaçar as mangas e ir trabalhar,
fazendo cupcakes em forma de coração ou escrevendo piadas. Trata-se de gerar
condições para que o fruto do trabalho de cada um seja devidamente valorizado, exactamente
o contrário do que hoje se passa.
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