domingo, 28 de outubro de 2012

DEBAIXO DO SOL


Sobre Bruce Chatwin (1940-1989) se diz ter sido um mestre da moderna literatura de viagens, rótulo que desagradava ao escritor por preferir ver os seus livros nas estantes de ficção a arrumá-los ao lado dos relatos de viagem. Quem leia as suas obras mais conhecidas – Na Patagónia (1977), O Vice-Rei de Ajudá (1980) ou O Canto Nómada (1987) - facilmente compreenderá o desconforto, pois neles de torna evidente um esforço de ficcionar a realidade, tanto a partir de retratos registados pela experiência, como na base de um intenso trabalho de recolha e investigação histórico-jornalístico. Tomando de exemplo O Canto Nómada, labor de uma vida publicado mais de 17 anos depois de assinar o contrato inicial, deparamo-nos com uma narrativa fragmentária onde se intrometem diversos apontamentos, sublinhados, diálogos, citações deliberadamente selecionadas para o efeito. Cubismo literário ou arte de colagem, é literatura a um nível genialmente inclassificável. Curiosamente, é neste domínio do inclassificável que melhor se entendem as cartas editadas e reunidas por Elizabeth Chatwin, viúva do autor, e Nicholas Shakespeare. De certo modo, esta recolha, apoiada por notas de rodapé preciosas e apontamentos biográficos que contextualizam, no tempo e no espaço, a produção epistolográfica reproduzida, funciona quase como uma espécie de autobiografia involuntária. Nelas descobrimos o homem para lá da lenda em que se transformou o autor, em momentos de revelação idiossincrática ora comoventes, ora desmistificadores. O Chatwin aventureiro de mochila às costas torna-se humano, demasiado humano, na inquietação permanente de quem se busca a si próprio indo ao encontro do diverso. Episódios caricatos alternam com confissões e desabafos, mas esclarecem um autor extremamente meticuloso e exigente nos assuntos profissionais e domésticos, empenhado em sobreviver em concordância com os seus sentimentos sem se expor a ponto de magoar terceiros. Daí a homossexualidade omitida, apesar do casamento nunca desfeito com Elizabeth, e a morte por sida transformada num raríssimo fungo tropical. Mas muito mais significante do que estes aspectos da vida privada são as passagens onde se esclarece, sem que no entanto se obvie, a personalidade humana que gerou o autor. Isso acontece, por exemplo, numa carta a Michael Cannon quando Bruce ainda trabalhava para a Sotheby’s: «A mudança é a única coisa pela qual vale a pena viver. Nunca passes a vida sentado a uma secretária. Seguir-se-ão úlceras e doenças cardíacas» (p. 54); ou quando numa carta a Sunil Sethi, de 1978, se refere à relação sempre complexa que manteve com a imprensa escrita (trabalhou para o Sunday Times): «O vício inveterado de todos os escritores ingleses é a sua atracção fatal por periódicos, o seu fascínio por revistas e a sua paixão por brilhar na edição. / Resolução do mês: Nunca escrever para jornais» (p. 239); ou ainda quando se refere à função do artista, numa carta dirigida a Keith Milow: «A função de um artista é trabalhar a) para si próprio b) deixar algo memorável para o futuro, escorar ruínas. Que se lixe o resto!» (p. 248). Foi este o investimento da inquietação que tomou conta, desde muito cedo, do homem Bruce Chatwin, dando origem a um escritor onde a errância e a vagabundagem foram métodos utilizados para a compreensão de si próprio e, de alguma maneira, de toda a humanidade. O nomadismo de Bruce Chatwin resulta de um conflito particular entre a necessidade de estar em trânsito e a busca de um lugar ideal para viver. Encontramos nestas cartas preocupações, até de algum modo excessivas, com a busca de uma casa, porque «toda a gente, de uma maneira ou de outra, é ciosa do seu território, e não vale a pena ter uma casa que não sentimos como nossa» (em carta ao arquitecto John Pawson, p. 350). Talvez o que inquiete o nómada seja, precisamente, o vislumbre desse território onde possa sentir-se integrado, em sintonia com o mundo e com as forças geradoras desse mesmo mundo. Já no termo da vida, Chatwin converteu-se à Igreja Ortodoxa e não deixa de ser sem perplexidade que o ouvimos dizer: «Quem me dera deixar de escrever, e tu? Esta actividade dos livros cada vez me convida mais ao silêncio» (carta a Murray Bail, p. 399). No fundo, apercebemo-nos que os estudos de arqueologia levados a cabo nos primeiros tempos encontraram o seu rumo na literatura. E que, provavelmente, a grande descoberta arqueológica de Bruce Chatwin foi o próprio Bruce Chatwin, quando se deparou com a morte num corpo consumido pela doença.