A obra de Jean Genet é um daqueles casos onde a experiência do homem e a expressão dessa experiência se uniram para gerar um mito. Para tal, contribuiu fortemente o famoso ensaio que Jean-Paul Sartre lhe dedicou. Saint-Genet Comédien et Martyr (1952) chegou a ser determinante no percurso literário de Genet, provocando uma crise produtiva que apenas viria a ser interrompida com textos breves e peças de teatro. Filho ilegítimo de uma criada para todo o serviço, nasceu em Paris no ano de 1910. A mãe entregou-o aos cuidados de uma instituição pública, vindo a falecer em 1919. Acusado de roubar quando tinha apenas 10 anos, foi internado na casa de correcção de Mettray. Aí permaneceu praticamente até aos vinte anos. Essa experiência foi a matriz do primeiro dos textos coligidos No Sentido da Noite (Sistema Solar, Junho de 2012), volume que em boa hora recupera alguns dispersos de Jean Genet anteriormente publicados entre nós, na sua maioria, pela Hiena Editora. A Criança Criminosa (1948) foi escrito para ser lido no programa radiofónico Carte Blanche, onde também deveria ter sido transmitido Pour en Finir avec le Jugement de Dieu, de Antonin Artaud. A censura da emissão levou Fernand Pouey, então autor do programa, a demitir-se. Trata-se de um texto provocatório onde Genet se refere à função das casas de correcção desmascarando conceitos como os de mal e de (re)educação, para daí assumir uma tomada de posição veementemente refractária da moral vigente e seus sistemas de socialização: «Quanto a mim, escolhi: vou estar do lado do crime. E vou ajudar as crianças: não a voltar para as vossas casas, as vossas fábricas, as vossas escolas, as vossas leis e os vossos sacramentos, mas a violá-los» (p. 29). Esta noção de crime deve ser entendida em toda a sua amplitude estética, e não apenas moral, na medida em que configura uma visão da arte enquanto acção libertadora e, dito de outro modo, enquanto acto de sabotagem das leis, normas e regras que oprimem os indivíduos numa sociedade mais empenhada em castrar do que em deixar florescer. É impossível dissociar esta perspectiva da repressão sexual colocada sobre o pederasta assumido que era Jean Genet, mas ela deve ser também compreendida na dimensão mais complexa de quem procurou desvelar na sua obra, iniciada em 1939, uma relação explicitamente conflituosa com as instituições zeladoras de uma Sociedade hipócrita. Podemos pois afirmar sobre Genet o que o próprio afirma num texto dedicado a Jean Cocteau (1950): «Poemas, ensaios, romances, teatro, toda a obra abre fissuras; e pelas fissuras deixa descobrir a angústia. Um coração extremamente complexo e doloroso queria esconder-se e desabrochar, ao mesmo tempo» (p. 36). Os criminosos na obra do autor de Notre-Dame-des-Fleurs (1943) assumem, neste sentido, o papel ambíguo do criador que, na mesma medida em que se dá vida na sua criação, mata-se aí mais um pouco. A sua posição é de oposição, primeiro à Sociedade e, no limite, à Moral que dá forma a essa mesma Sociedade. Na Carta a Jean-Jacques Pauvert (1954) e no texto Como Interpretar Les Bonnes (1962), indissociáveis por ter sido Pauvert o editor das duas versões da peça em causa, fica patente esta consciência dramática da criação, ainda que a mesma deva admitir um jogo entre a verdade e a encenação dessa mesam verdade: «Uma das funções da arte é, sem dúvida, substituir a fé religiosa pela eficácia da beleza. Esta beleza deve ter, pelo menos, a força de um poema, quer dizer, de um crime» (p. 42). Desafio permanente à autoridade, esta obra, onde a brutalidade do crime se transforma em beleza e a sexualidade desviante faz tremer os alicerces de uma moral conservadora, parece estar enraizada numa percepção do artista enquanto actor cujo palco é a sua solidão intrínseca. Pelo menos, é essa solidão que mais vem à tona nos Fragmentos (1954), rascunhos para um poema escritos em torno da relação com o prostituto italiano Decimo Christiani que quase terá levado Genet ao suicídio, e em O Funâmbulo (1957), “carta poética” a Abdallah Bentaga, protegido de Genet que se suicidou após o corte de relações: «Para o poeta dispor da solidão absoluta, a que precisa se quiser realizar a sua obra – extraída de um nada que ela preencherá e fará ao mesmo tempo sensível – poderá expor-se numa atitude qualquer, que seja para ele a mais perigosa. Afasta cruelmente todos os curiosos, todos os amigos, qualquer solicitação que tratasse de lhe inclinar a obra para o mundo. Queira ele, pode proceder assim: espalhando à volta um cheiro tão pestilencial, tão negro, que ele próprio se perca nele e fique por causa dele meio asfixiado. As pessoas evitam-no. Permanece só. A maldição aparente vai permitir-lhe todas as audácias porque mais nenhum olhar o perturba. Vê-lo-emos mover-se num elemento parecido com a morte, o deserto. A sua palavra não levanta nenhum eco. E porque ela já não se dirige a ninguém, já não deve ser compreendida pelo que está vivo, deve enunciar uma necessidade não exigida pela vida mas pela morte, que a ordenará» (p. 78). A citação justifica-se pelo que parece conter de pedagógico relativamente ao processo criativo do próprio Jean Genet. Aqui, a solidão não é apenas condição essencial do poeta, é também método. É o método que coloca o autor num lugar privilegiado, ou seja, o lugar onde as convenções se afundam e o homem emerge, o lugar onde o olhar do outro se distancia para que o olhar próprio possa dançar sem quaisquer constrangimentos. No pequeno ensaio intitulado A Estranha Palavra Que…(1967), Genet aprofunda estas concepções tendo por objecto de análise o teatro. E aí fala de um «teatro entre túmulos», isto é, um teatro muito mais de acordo com a vida, afastado da ordem científica que tudo pretende iluminar, lançando sobre as coisas uma luz artificial, mas próximo das entranhas da terra, que tudo consome e faz renascer. Nesta capacidade paradoxal de dizer a vida mostrando a morte parece assentar, igualmente, a interpretação da obra de Rembrandt sobrada em dois textos fragmentários aqui coligidos: O Segredo de Rembrandt (1958) e O que sobrou de um Rembrandt rasgado em quadradinhos muito perfeitos e que foi à vida nas latrinas (1967). Tendo Rembrandt como pretexto são, como sempre acontece, textos sobre Jean Genet. Ou, pelo menos, textos onde quem os escreveu se dá a ver resguardando-se de quem o lê. Destes paradoxos se fez a obra e a vida de um homem, sendo provável que não apenas de um homem, mas, pelo menos, de parte do que existe em todos os homens que criam.
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