quarta-feira, 31 de outubro de 2012

QUAL O PERIGO DE REFLECTIRES E DE TENTARES? PODES DIZER-ME?

Rêgo, Lisboa. 2011.

Não julgueis que me calo por indiferença ou orgulho. Tenho, antes, o coração dilacerado quando me vejo transformado num objecto de escárnio. Todavia, quem mais do que eu terá oferecido dignidade aos novos deuses? Silencio, porém, aquilo que sabeis. Mas escutai as misérias dos homens; escutai como, no começo, eram eles ignorantes e os tornei cientes e senhores da sua inteligência. Digo isto sem qualquer censura aos humanos, mas só para vos mostrar que nasceram do coração das minhas dádivas. No começo, eles olhavam e não viam, escutavam e não ouviam, passavam a vida alongada e néscia como sombra de fantasias. Não conheciam as casas soalheiras e feitas de tijolos, nem a madeira trabalhada. Viviam em cavernas, nas eternas trevas dos profundos antros, como formigueiros fervilhando. Não possuíam signos para o Inverno, nem para a florida Primavera, nem para o fecundo Verão. Faziam tudo sem entendimento, até eu lhes ensinar o nascimento e o acaso das estrelas mais difíceis de avistar. Para eles inventei o número, suprema sabedoria, e a arte de juntar as letras, memória de todas as coisas e infatigável mãe das Musas. Fui o primeiro a submeter ao jugo e ao carrego os cavalos selvagens para que ajudassem os homens nos trabalhos mais fatigantes; fui o primeiro a atrelar a carruagem, ornamento de magnífica riqueza, os cavalos submissos ao freio. Primeiro e sozinho, eu congeminei os velívolos carros dos marinheiros que vagueiam pelo mar. Tudo isto inventei em favor dos homens, mas - ai, mísero de mim! - vejo-me incapaz de inventar um meio de libertar-me agora dos meus tormentos.


Fotografia: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: Ésquilo.

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