Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.»
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
José Gomes Ferreira (n. 1900 - m. 1985), in Viver Sempre Também Cansa (1931). Segundo A. J. Saraiva e Óscar Lopes, «poeta consagrado, da geração da presença, mas comummente conotado com a corrente neo-realista. (...) Foi principalmente o porta-voz de um sentimento de remorso e responsabilização do intelectual por todas as brutalidades e injustiças (...).» Geração da presença é o nome que se dá a um vasto e
heteróclito número de colaboradores da revista Presença, começada a publicar em
Março de 1927. O último número data de Fevereiro de 1940.
4 comentários:
Um dos poemas que anda sempre comigo
grande poeta, grande poema.
Maravilhoso !
Que beleza de poesia!!!
Daqueles que se lê e retorna retorna, retorna....
Bom demais!
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