quarta-feira, 7 de novembro de 2012

MUNDO DE JONET

Camarada Van Zeller, as ciganas do meu bairro excitam-me. As novas e as velhas. Estas porque vestem saias compridas, geralmente negras, não vão à cabeleireira e levantam-se cedo para apanhar caracóis. As outras porque parecem putas, vestem-se como putas, entram e saem de carros suspeitos, tal qual putas. E as putas excitam-me. As ciganas do meu bairro vivem no mundo de Jonet, apesar de não lavarem os dentes. Suponho que não os lavem porque ou os não têm ou os têm estragados. A pasta de dentes está pela hora da morte, não oferecem detergentes para a boca na benfeitoria, só sopa de caracóis. É preciso poupar para ir ao bowling beber café, já que não dá para ir ao concerto de rock. As ciganas do meu bairro nem sequer gostam de rock, o mais rock que ouvem é o Tony Carreira na grafonola do Mercado de Santana. Se alguma vez foram a um concerto, foram puxadas pelos carros suspeitos. Talvez tenham dançado ao som dos Lords nas festas em honra de Nossa Senhora de Jonet, à freguesia do Auxílio. Olho para as ciganas do meu bairro, este bairro do mundo de Jonet, e imponho-me uma estóica reaprendizagem de ser pobre. Isto de reaprender a ser pobre tem muito que se lhe diga, porque só reaprende a ser pobre quem já o foi e deixou de ser. Quem nunca foi pobre pode não ter sequer que aprender a sê-lo, bastando-lhe sugerir aos que já o foram que voltem a sê-lo. Eu quero ser pobre, eu ambiciono ser pobre, eu desejo ser pobre, preciso que me ensinem a ser pobre. Eu venho-me de austeridade. Por isso me levanto bem cedo, antes de ir para o trabalho, e fico a olhar as ciganas do meu bairro. Masturbo-me a olhá-las - as velhas apanhando caracóis, as novas ganhando para o Nestum - e confesso que tenho vivido acima das minhas possibilidades. Nada devo a ninguém, felizmente, mas a verdade é que vivo acima das minhas possibilidades. Contribuo para o banco alimentar, distribuo cigarros pelos carochos, fumo e bebo e vou ao cinema e ao concerto de rock. Só não vou à missa largar tostão no cesto de verga, não quero exagerar nesta coisa do despesismo. Sou um consumista indefectível, tenho asma, respiro mais do que o necessário, do MEO prescindiria não fosse ter a viver comigo uma família idiota. A minha família é idiota, vive num mundo de Jonet. No mundo de Jonet nós vivemos de uma maneira completamente idiota. Nós somos nós, todos quantos lavam os dentes com a água da torneira a correr. Por exemplo, os idiotas dos filhos da Isabel. As ciganas do meu bairro não são idiotas porque não lavam os dentes, mas os filhos da Isabel são. Eles lavam os dentes. Esperemos que limpem a cera dos ouvidos. Aqueles que foram educados a lavar os dentes com água no copo também são idiotas, pois não souberam educar os seus filhos a fechar a torneira. É provável que esses mesmos filhos prefiram um concerto rock a fazer uma radiografia, o que não se lhes censura. Excepto se for um concerto de Rock in Rio. Há que fazer aqui uma lógica de contabilidade doméstica, há que ir aos concertos do Padre Borga. São mais baratos, poupamos no merchandising. No mundo de Jonet há pobres, mas não há miséria. Há muito Nestum. Três milhões de portugueses entopem os centros de ajuda e os abrigos, dormem na rua, não lavam os dentes, ouvem Padre Borga, beijam a mão caridosa da Isabel, estão robustos, rechonchudos, comem Nestum. É certo que muitos desempregados não vão encontrar uma oportunidade de trabalho porque continuam em casa dos pais a comer Nestum para poderem ir ao concerto de rock, pelo que devíamos de uma vez por todas acabar com os concertos de rock. Só missa e Padre Borga e Isabel no mundo de Jonet, porque dos indigentes será o reino do senhor. Cada um de nós tem de fazer o esforço de olhar para aquilo que vai perder como uma necessidade de voltar ao mais básico, e voltar ao mais básico é ser livre, é ser feliz, é poder dizer que nada se tem a perder porque, na realidade, nada se tem, excepto água no copo para lavar os dentes. E caracóis na erva. Que a sede mata-se por si enquanto Isabel puder cuspir nas nossas mãos.

23 comentários:

R. Vieira disse...

Gosto muito da forma como forma como você se expressa! parabéns!!

"Cada um de nós tem de fazer o esforço de olhar para aquilo que vai perder como uma necessidade de voltar ao mais básico, e voltar ao mais básico é ser livre, é ser feliz, é poder dizer que nada se tem a perder..."

Muito bom!

margarete disse...

ah, fadista!

antónio ganhão disse...

Brilhante! Absolutamente.

Tétisq disse...

Adoro! Posso roubar para o fb? Posso?
Já roubei...

Graça Sampaio disse...

Belo texto!!! De facto. Parabéns!

MJLF disse...

A Jonet é uma imbecil! Este texto é muito bom. bjs e saúde para toda a tribo

Fátima Inácio Gomes disse...

Bravo!
Superlativamente.

Anónimo disse...

E eu que procuro à dias forma de comentar aquela intervenção....
Espectacular, vou levar (esperando que o leiam).
CristinaGonçalves

Luis Eme disse...

muito bom.

benditas ciganas que te inspiram e excitam!

Claudia Sousa Dias disse...

Não resisti a partilhar esta pérola no facebook, com link para esta página. Obrigada.

Bento Anastacio disse...


tomei a liberdade de partilhar o seu belicismo,

marta disse...

o mundo de jonet, o admirável mundo de jonet. nem uma punheta merece. mundo em que tudo é execrável para lá do execrável. mundo em que a realidade é uma invenção constante apenas destinada a inspirar os elogios que ela e as outras madamas devem trocar sobre os seus bem-fazeres. nem para rata da sacristia do borga esta madama dá.
( abraço apertado, henrique, abraço apertado)

Alvaro disse...

Viva Isabel Jonet umbem haja para si.E bem melhor que este idiota de pacotilha.

Alvaro disse...

Um bem haja para a Isabel Jonet...bem melhor que este idiota.

Anónimo disse...

muito bom, adorei o ritmo e a atmosfera, obrigado pelo delicioso momento.

alf disse...

Fogo!!!! Fantástica a prosa e as ideias...
Vou partilhar, pois claro.

maria disse...

as minhas históriqas com as ciganas do bairro não são tão emplogantes como as tuas...:)

Quanto à Jonet e aos jonetos continuarão, assim, agarradinhos à ilusão de que são os maaiores.

rvn disse...

Bom texto, um belíssimo exercício de palavras que suspeito ter nascido daquele tipo de inspiração perfeita que se pode sempre encontrar (por quem tenha arte para o fazer, como é o caso) neste tipo de espalhanço protagonizado por figuras que à partida já estão mesmo a pedi-las, mais pelo que são e pensam sempre do que propriamente pelo que dizem ou fazem numa determinada circunstância em particular, digo eu. Como esta circunstância de Isabel Jonet se prestar à televisão sem ter capacidade dialéctica para tal, atirando-se a raciocínios e conceitos que não é capaz de exprimir por inteiro na apresentação de um pensamento em tempo televisivo, tão irreprimível lhe é a tentação do lugar comum e do moralismo bacoco para embrulhar tudo o que quer dizer (e que logo à partida já não é grande coisa em termos de substância, o que não ajuda muito, convenhamos). Por isso se fica pelos títulos (mal escolhidos ainda por cima) que junta naquelas frases a estralejar num céu de esperança: que a meia palavra sempre baste aos bons entendedores, como diz o povo... e assim se expõe ao desastre do disparate, mesmo dizendo coisas até nada disparatadas em concreto e na essência, se formos a ver bem. E pronto, é quanto baste para preencher os requisitos da tal inspiração perfeita a que eu me referia lá atrás e que terá motivado hmbf ao ponto deste escrito, para regalo dos meus sentidos e dos de todos aqueles que, como eu, terão apreciado o texto.

Ressalvas só uma, antes do adeus, se me permitem. Todo este bruá à roda do facto em si (as palavras de I.J.) tem o condão de configurar um novo incidente de asneira em que somos todos participantes (uns mais voluntários que outros, é certo): aquele que na prática resulta desta crucificação algo excessiva da figura da senhora presidente do Banco Alimentar. Vamos, que diabo, um prego em cada mão, vá lá, outro nos pés, enfim, mas mais? Tantos e tão grandes? Pum, pás, pim, zás, catrapum, será mesmo caso para tanto? Foi caso de estupidez, negro preconceito, desonestidade intelectual, insulto gratuito ou algo mais que simples parvoíce? Não me pareceu, confesso. Julgo até que espremidinho a preceito, tudo o que este episódio revelou ao país foi (mais) um erro de casting chamado Isabel Jonet, isso sim, e pouco mais que de facto interesse ao Portugal dorido que somos, nos dias que correm.
É certo que se trata de um erro de casting dos grandes, daqueles mesmo enormes, lá isso... mas eu sinceramente vejo outros, maiores e piores, todos os dias no mesmo ecrán onde Jonet se espalhou ontem ao comprido.

hmbf: bom texto, parabéns.

de.puta.madre disse...

A Jonet ocupa um cargo acima das suas possibilidades, aliás, esta crise bem se devem a haver muitas Jonet's .- muita gente a ocupar cargos muito acima das suas capacidades. Vale.

Mário Pereira disse...

Li o seu texto com atencao e nao sei se o devo entender como mero texto literario ou uma descarada descontextualizacao das declaracoes que comenta... de todo o modo, caso estivesse minimamente consciente do mundo que a rodeia (e nao me refiro ao seu bairro ou as ciganas) constataria que existe uma realidade que vai de encontro as declaracoes de que, com ironia, faz uma leitura truncada e enviesada. ja ouviu falar de sobrendividamento??? Sabe que, em média, as famílias portuguesas apresentam uma taxa de esforço de 96%?Isto significa que apenas 4% do seu rendimento não está canalizado para créditos... E vem falar de ciganos??
Quando acordar do delirio ideologico em que mergulhou, e quiser falar do mundo real e dos verdadeiros problemas da nossa sociedade, constatara (com espanto, certamente) que os portugueses caíram no logro do crédito simples, por telefone, para tudo e mais alguma coisa, desde telemóveis de ultima geração, a férias ou colchões ortopédicos, etc, sem pesar as consequências de incumprimento futuro.
Em média, por família existe 5,2 créditos – o que é demonstrativo de que estivemos a viver acima das possibilidades. Percebeu agora as declarações? Fez-se luz (um fogacho que seja)?
Aliás, se tiver o cuidado de analisar as taxas de esforço, em lugar de ironizar sobre concertos e radiografias, vera que por tipo de crédito logo a seguir à habitação, que pesa mais no rendimento (40,81%), surge o crédito pessoal (42,81%) e crédito automóvel (20,25%). Mais do que isso, vai constatar que esta realidade criou um novo tipo de pobreza e que estas famílias tem tido como único suporte o trabalho de IPSS como o banco alimentar. Dedique-se a ficção,que pelos vistos e o seu forte. Nos intervalos, se quiser contribuir de forma positiva para a discussão dos verdadeiros problemas, faca um esforço por compreender o que a rodeia, em lugar de se recriar com "fait divers" e processos de intenção. O seu texto diverte aqueles que, como a senhora, vivem alienados e se acham clarividentes, e certament faz um belo post no facebook. No mais, não passa de um exercício medíocre de cidadania, uma confrangedora e aviltante demonstração de ignorância.

Anónimo disse...

Uhhh! Que homem bravo! Que bravo cidadão - Mario Pereira! E sábio e consciente! Sem nenhum preconceito nascido de sonho ideológico!
Desvia-se bilhões praticando todo tipo de corrupção política e são as dívidas sobre os 500 euros mensais recebidos pelos portugueses que provocaram a crise!
Levam adiante sob política de austeridade um sistema impossível sob quase todos os aspectos e são os colchões ortopédicos o cerne do problema!
Oh cabrão - vai dormir!

Porcelain disse...

Excelente texto... muitos parabéns!

pobresinho profiçional disse...

Gostei muito do seu cumentário, senhor Pereira. Estes esquerdiztas não tem juíso. Pensão que o dinheiro cái das arvores
Expeliqueles quanto tempo vou levar até pagar as minhas díbidas do BPN e dos dos sumarinos