sexta-feira, 2 de novembro de 2012

ÚLTIMA PARAGEM, MASSAMÁ

Recentemente contemplado com o Prémio Primeira Obra do PEN Club, Última Paragem, Massamá é o romance de estreia de Pedro Vieira (n. 1975). Vieira chamou sobre si as atenções do universo blogosférico como caricaturista e é como caricaturista que a sua prosa melhor se afirma, oferecendo aos leitores uma perspectiva irónica do Portugal suburbano. Personagens respigadas no percurso de todos os dias, num quotidiano vulgar e, felizmente, sem truques fantasiosos nem hiperbolizações desnecessárias, compõem o ramalhete deste romance que, num certo sentido, arrisca-se a ser um romance geracional. É o sentido de quem o leia encontrando ali um retrato impiedoso de uma geração que já foi rasca, passou a ser à rasca e vai sendo, como tantas outras, a geração do desenrasca. Até aí nada de novo. Diz-se da geração representada nestas páginas que é a mais bem qualificada de sempre, predicado que lhe valeu lugar cativo nos cubos de um qualquer call center, como caixa de hipermercado ou ao balcão de uma livraria. Com a vantagem, obviamente, de não ter mais pelo que sonhar. Eduardo Pitta referiu-se a Nome de Guerra quando escreveu sobre Última Paragem, Massamá, mas parece-nos mais justo lembrar aqui O Que Diz Molero. Não se trata de comparar, pelo menos não tanto quanto pretende tratar-se de enquadrar. Tal como o “livro-bomba” de Dinis Machado, também este “livro-petardo” «é humor, é violência álacre, é cinema escrito» (Luiz Pacheco). E faz barulho, mesmo que não provoque estragos. Mas marca pontos nos riscos que corre ao assumir um ritmo vertiginoso, garantido por uma pontuação mínima e uma extrema competência na desconstrução das palavras, arrancando-lhes significados dúbios e conjugando-as com o talento de quem faz parecer simples a fluidez do discurso. Pejados de expressões populares, estrangeirismos de uso corrente, apontamentos coloquiais na linguagem ordinária de todos os dias, passe a redundância, os parágrafos de Última Paragem, Massamá são como o andar da carruagem: a viagem vai sendo feita com paragens que não descontinuam a narrativa. Antes pelo contrário, imprimem-lhe uma dinâmica que transporta o leitor para o interior da locomotiva, dando-lhe a ver as cenas de uma vida como quem espreita o mundo lá de fora à janela de casa ou como quem observa olhando, com os olhos da imaginação, o passageiro do lado. Talvez o ponto mais fraco do livro seja o narrador não resistir aos comentários ora escarninhos, ora auto-irónicos, que vai fazendo sobre a sua própria prosa. O tom jocoso geral, mesmo quando permite descobrir alguma raiva e um pouco de melancolia nas entrelinhas, bastava à narrativa, e evitava transformar o autor em mais uma personagem desta tragicomédia. Sublinhemos porém um pormenor na estrutura que não é meramente decorativo. Cada cena da história aqui contada é separada por um breve apontamento que nos envia para a Roma de 9 d.C., e para o infortúnio de Públio Quintílio Varo na batalha travada contra os germanos na Floresta de Teutoburgo. Colocando aí o início do romance, Vieira diz-nos também que foi aí que tudo começou. A nossa desgraça às mãos de uma Alemanha dominadora foi a desgraça dos romanos aos pés da Germânia. Podíamos indagar-nos sobre o que teria sido de nós se o império da Grande Puta continuasse a disseminar pelo mundo os seus bons hábitos. No fundo, a Vanessa do romance, que tal como Públio Quintílio Varo acaba se suicidando (podemos dizê-lo porque o narrador não o omite desde o início) tem em si o heroísmo dos derrotados. Mais que por grandes feitos, fica na história por à sua volta se tornar  evidente a degenerescência da humanidade e a miséria dos povos. É por isso que o tempo a partir de onde se narra não é tão concreto quanto possa parecer. Sabemos onde estamos porque olhamos o nome do local na placa da Estação, mas os calendários da História são enganosos. Quando menos esperamos, o passado torna-se presente e o futuro intromete-se abruptamente como consequência das acções. O Império Romano dos separadores é e não é a Massamá de Vanessa & Cª, porque à força de já não haver semideuses a mais heróica das acções parece ser a sobrevivência e, paradoxalmente, o mais heróico dos gestos parece ser a recusa desse estado geral de subvida que é, como diria O’Neill, a vidinha de todos os dias.

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