domingo, 23 de dezembro de 2012

O CANIL DOS CÃES ZAROLHOS

para o António Cabrita

 

 

desgraçadamente ladram mas não mordem

buscam nas urnas os donos
e estes passando a mão pelo pêlo
roubam-lhes a ração da boca
logo à boca das urnas

sempre fiéis e de beiços arreganhados
basta um açoite no traseiro
para ficarem mais obedientes e servis

os cães afiam os dentes
temendo as garras e os bicos dos abutres
numa ilusão - rasante às ciladas
da vida - gretada de palavras febris

uns ousam ladrar mais acirrados
correndo o risco de serem encarcerados
enquanto outros saltam a cerca
antes da manhã derramelar as hienas

e há os que se atiram contra o arame
farpado
             esfarrapando-se em massa
num mimetismo desesperante

subalimentados ladram docinho
roçando as pernas dos donos
para ganhar um osso
na praia dos trompetes em chamas
à beira-mar da noite espezinhada
pelo terror das hienas
enquanto anónimos suicidam-se
no sussurro da infâmia
defronte aos que mastigam bolores
para sobreviverem

a caridade vai derramando asfixiante
misturando-se a um crude solidário
                                                        legal
e é legal ladrarem um poucochinho
manifestando a ira de açaime sindical

cães velhos corroídos de crostas infecciosas
e respiração barbitúrica
rosnam aos espelhos do requiem
sabendo serem um enfarte de trabalhos
aos tratadores do canil

os veterinários vão ministrando remédios
contra-indicados corroborando
na deterioração lenta das carnes
embebidas em minutos sem sangue
cozinhando a ração para ser distribuída
aos da lista de espera que teimosamente restam
entre restos de lixo e lixos da fé

colocam açaimes controlando a informação
e uma coleira de mecânicas palavras escolhidas
repetidas até à exaustão

a imprensa tornou-se parasita e
os jornalistas uns piolhos de salão
alimentando-se de noticias tosquiadas
                                                              ocultam
a incómoda realidade para as hienas

os comentadores do regime viraram coveiros

e dentro das valas vão-se babando
as carraças que gravitam ao seu redor
vendendo-se para se sentarem à mesa
dum ficcionado banquete do real

com pedigree romano/nazi
tem o canil uma nova dona que vem
descaracterizando os sinais únicos
do âmago duma pátria
 
aos peixes saquearam as espinhas
aos frutos os caroços
e um temporal não se levantou

caminhantes dos atalhos moribundos
lançam ao passar pelos dias de esgoto
sementes bolorentas sabendo de antemão
ser o seu gesto inútil
                                  ser e nada brotar

rosnam trovões sob a morte das searas

lembranças do purgatório ateiam fogo
às papoilas
                   ao redor jovens cachorros
arregaçam os caninos aos escaravelhos
que esperneiam nos subúrbios do planeta
                                                                    em agonia
entrançando de nuances uma existência aziaga

nocturnos eram os rostos
diurnos os sonhos improváveis

improvável era encontrar os teus dizeres
guardados numa gaveta de nuvens
prenhas de anjinhos com açaimes  
percorrendo lentamente o vazio
onde ao centro um fedelho agrafa
penas de toutinegra nas asas do vento
a raspar a saudade
                                apunhalando os rostos
no enterro do pensar porque
                                               pensar é um veneno
e os retratos ardem nos lugares alertando
ser o amor um tumor de pó e cinza

perseguem estrada fora os da paz
                                                        uma antiguidade

mão de fogo outra de água espelhando o vulcão
cuspindo cadáveres enforcados
depositando a lava para os olhos
dos tempos que hão-de vir
                                            cegando de pavor

pela estrada paralela caminham os da guerra
seguindo por agora no contrário dos outros
reacendendo um sangue no peito

ao fundo a encruzilhada

assim chegámos assim chegaremos
à roda a um fim de mínimos de tudo
onde o todo é um nada

aos cães bastaria
alimentarem-se bem na infância

daí para a frente o cagado seria o alimento
continuado num circulo rotineiro
até a morte aparecer para se alimentar da luz
e cuspir a carcaça

o mundo
               mal cheiroso
confluindo merdas de vendáveis ilusões

como não é meu designo governar
fazer curriculum perpetuar a espécie
nem mesmo proferir oratórias
com estandartes bordados de lambidelas
a um qualquer regime
uso por hora as letras
                                    para dinamitar
o covil das hienas eleitas
com um cante ao desafio

é escusado irem ver a barca bela 
pois já não se faz ao mar 
a treta nunca foi nela
e os escravos é que iam a remar

santa Merkel é o piloto 
o FMI o general 
que nojento trapo levam
o fado de Portugal

as palavras sempre pertenceram à morte

um dia um cachorro das últimas ninhadas
ladrará bem alto pela libertação do canil
ferrando os dentes nas contorções das hienas
até o veneno fritar-lhes o cérebro no parapeito
da janela defronte à estrada muralhada
de cadáveres em vinagre e nadas

nesse tempo de nova rotina doméstica
eu já não andarei por estas bandas

nesse tempo os homens voltarão
por algum tempo de novo a ler
nos remoinhos do saber mais além
enquanto lá longe vou minguando
em busca dos meus olhos laminados
por gente vil que conseguiu tornar-me
na dor que lhes convém

cego seguirei para voltar ao sofrimento da terra
onde todos os trajectos de
                                           todos
os lugares vão sempre dar à morte

por hora
por hora volto
                       ao aconchego dos braços

o pouco que me resta


 

Jorge Aguiar Oliveira
Inédito. Cacilhas, Dezembro de 2012

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