quarta-feira, 27 de março de 2013

ODES


Um livro de poemas cujo primeiro verso é «que se fodam» (p. 9) diz logo ao que vem. O leitor sensível pode ficar sem vontade de, mais que não seja, avançar um pouco nas páginas. Arrumará o livro na prateleira, degustará uma canja de galinha enquanto folheia o jornal e descobrirá a ligeireza popstar dos poetas depressivos da nação. Faz mal. Se quiser dar-se ao trabalho de folhear as Odes, de João Bentes, poderá verificar a diversidade de sujeitos a quem aquele primeiro verso é merecidamente dedicado. E não é com ironia que vislumbramos até uma certa delicadeza no gesto, independentemente das acções de promoção com que hoje se salda uma atitude poética de se estar na vida que não se resume a escrever livros, publicá-los, dar entrevistas, ser convidado para o Correntes d’Escritas, ir à Madeira ou à Colômbia com o cartão do clube na carteira. Organizadas em três conjuntos – Transporte (2008), Odes (2010), REP (2011) -, estas canções sugerem um ritmo para o qual a lira já não basta. O discurso voluntariamente distorcido dá guarida ao ruído, deixa-se embalar pelas pulsações, traz o coração à garganta, fervilha com a razão contestatária de um “gangsta rap” esclarecido. Noutro sentido, podemos dizer que estas odes são neo-triunfais. Recuperam a torrencialidade de um Álvaro de Campos e a exaltação de um Almada Negreiros, estando igualmente contaminadas pelo desencanto e pelo desassossego. Mais contido na forma que os mestres modernistas, João Bentes mantém um discurso informal, explosivo, directo, consciente de uma urgência interventiva que a poesia não pode excluir. Não oferece títulos aos poemas (entendam como quiserem) e limita-se a pontuá-los na medida de necessidades expressivas básicas e correntes. Distante da comunidade lisboeta, coloca no centro das suas atenções a paisagem algarvia. É muito pertinente esta opção, não só pela ligação às origens geográficas, mas por poder ser hoje o Allgarve um símbolo da degenerescência portuguesa que nos trouxe ao estado de histeria nacional em que vamos andando, paradoxalmente, cada vez mais conformados com a miséria alheia. Nenhum dos males modernos escapa a estes poemas que, por vezes, se limitam a inventariar podres num discurso sufocado pela actualidade política e social. Há um tom de sermão que talvez fosse escusado - «escutem devotos viriatos niilistas / rendidos à vida pela grande honra dos capitais / há centenas de satélites com toda a informação precisa / que só lá andam graças a um parafuso português» -, mas quando o poema resvala em sentidos que pressupomos autobiográficos ganha uma força impressionante. Não resisto a transcrever a estrofe inicial de um longo poema incluído na primeira parte do livro: «vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço / julgo que esteja extinto o primeiro peixe que apanhei / quando a água benta me bateu na testa disse areia / no primeiro dia de escola fiz-me condutor de barcos / mais tarde ensinaram-me todos os olhos da amêijoa / o que ganhei foi a deformação do anelar e do mindinho / mais a hipótese de uma hérnia no meio das costelas / e quando o lingueirão se tornou demasiado escasso / disseram-me que isto não era vida para ninguém» (p. 20). Parece-me óbvio o que afasta esta poesia das secretárias onde se olha o mundo sentado à janela. A autenticidade que emerge nestes poemas torna-os legítimos, ao mesmo tempo que nos garante um testemunho onde mais do que uma construção artificial da realidade temos uma expressão do mundo nas experiências de um corpo. Vejam como termina o poema: «e foi preciso morrer-me o pai / para regressar à seiva do meu ser / afastar-me lentamente das coisas deste mundo / até conseguir a melhor forma de não querer / com a frieza de me despojar de todos e de tudo / para que apenas tenha o que sempre houve antes / que é esta terra onde vivo e que também é minha / onde recuso a vossa estranha liberdade / levanto forte e alto o duro braço da poesia» (p. 24). Sem ter no horizonte os resumos da FNAC, João Bentes colecciona nestas odes momentos de intensidade diversa. É verdade que estando estes poemas contaminados por uma animosidade evidente, deixam-se por vezes cair num lodo onde o supérfluo teima manchar o resultado final do discurso. Aconteceu o mesmo com muita da poesia vinda a lume na Geração Beat, a qual encontra nestas odes momentos de digna representação. Mas esperando que o autor não me leve a mal, parto algumas estrofes de uma destas Odes e pergunto-me, pergunto, se isto não é do melhor que a poesia portuguesa nos ofereceu nos últimos tempos:
 
(…)

eu não consigo arrumar-me nesta vida e ter coisas
razão pela qual já só me resta não ter vergonha
e rir-me do que posso na paciência dos meus versos
 
(…)
 
eu não faço nada à pressa porque o meu amor é de vagar
mas são em mim as muitas forças do desejo
que o amplo mar oferece a quem contempla
 
(…)

 
em mim o mar transporta todas as ondas
o verde das árvores desponta radioso completo
todas as estrelas cintilam misteriosamente os céus

acontece como a música desprende-te vai longe
não temas porque tudo já foi antes de ti
um rejubilar incomensurável do universo
 

(…)
 
Resta dizer que o livro termina com a palavra mudança. E um ponto de exclamação.

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