domingo, 10 de março de 2013

RIO GRANDE (1950)




Qualquer que seja a perspectiva, facilmente se conclui que a História dos Estados Unidos da América (do Norte) confunde-se com a cinematografia de John Ford (1894-1973). A Trilogia da Cavalaria é um desses momentos, na sua vasta obra, em que se torna evidente a função historiográfica do cinema. Mas esta função historiográfica não é preponderante, na medida em que se permite ultrapassar pela exploração psicológica das figuras representadas. É assim com a ambição e o ressabiamento do Tenente Coronel Owen Thursday (Henry Fonda), em Fort Apache (1948), como com a coragem, determinação e entrega do Capitão Nathan Brittles (John Wayne), em She Wore a Yellow Ribbon (1949). Não respeitando uma sequência cronológica, os três filmes encontram-se ligados por múltiplos aspectos. Por um lado, a omnipresença de actores como John Wayne (símbolo, por excelência, da americanidade) e do inglês Victor McLaglen (como que fazendo justiça às origens britânicas do mestre); por outro, a reincidência de alguns actores na trilogia (John Agar nos dois primeiros; Ben Johnson nos dois últimos, curiosamente no corpo de uma personagem com o mesmo apelido: Tyree). Podemos induzir que estas repetições, acompanhadas de uma evolução reflectida nas patentes dos militares em cena, fazem recair sobre a figura de John Wayne o centro das atenções. O primeiro e o terceiro filmes da trilogia foram filmados a preto e branco. Apenas o segundo é a cores. No entanto, é no segundo dos filmes que a personagem interpretada por John Wayne aparece mais madura, com madeixas brancas no cabelo, viúvo, no estatuto de capitão. E se no primeiro e no terceiro filmes tem um apelido similar, no segundo Kirby York(e) transforma-se em Nathan Brittles. Não sendo a mesma personagem, pelo menos em nome, poderia ser o mesmo homem. Assim somos levados a acreditar, também, por se passarem as três narrativas num mesmo espaço geográfico, ao longo de uma mesma época, posterior à Guerra da Secessão, em que a Cavalaria fazia recair as suas preocupações sobre grupos de índios que não se conformavam com as imposições da “governação branca”. A verdade é que na filmografia de John Ford encontramos muitos exemplos onde o que parece não é, sendo que o oposto também se verifica. O olhar que perpassa nos seus filmes está mais concentrado na dimensão humana das personagens do que numa eventual esquematização narrativa, reverente a pressupostos históricos, culturais e políticos. Rio Grande é, neste contexto, um filme extraordinário. Nele encontramos um militar rigoroso e absolutamente dedicado ao sucesso das suas missões, colocando a Cavalaria acima da família e dos interesses pessoais. O condimento que apimenta o drama surge quando o seu filho surge como recruta no regimento. Mas a tensão não se fica por aqui. Logo de seguida, aparece a mãe do recruta Jeff Yorke com a intenção de o poupar à vida militar. O drama familiar assim incutido toma conta da narrativa, relevando para segundo plano outras leituras possíveis. Rio Grande impõe-se como uma versão do complexo de Édipo, com um jovem rapaz a querer afirmar-se aos olhos do pai, reclamando o seu respeito, esforçando-se por merecer a sua consideração. Jeff criou dentro de si a imagem do pai-herói e quer responder-lhe com determinação, embora a mãe tente adverti-lo de que para ser um grande soldado tem um homem que se tornar uma muralha de solidão. Esta mesma muralha impede Kirby Yorke de manifestar os seus afectos quer pelo filho, quer pela mulher, embora eles sejam perceptíveis em momentos de dissimulada preocupação e esgares de ternura levados pela sombra. A presença de Kathleen e Jefferson no acampamento abrem na vida do Tenente Coronel Kirby Yorke a ferida que, no fundo, lhe permitem ser homem para lá da Cavalaria. A flecha que Jeff extrai do peito do pai, no termo de um conflito com um grupo de Apaches que haviam raptado as crianças do acampamento, é a imagem poderosíssima de uma leitura alternativa do complexo edipiano. Mais do que matar o pai, Jeff salva-o da morte. E este gesto valerá tanto dentro de si como qualquer outro que pudesse marcar a sua afirmação, a sua libertação de um elo protector que acabava por diminuí-lo enquanto ser autónomo, livre, independente. Aquela flecha é o milímetro de cordão umbilical que lhe faltava cortar para ser livre. Kirby Yorke percebe-o, por isso pede ao filho que extraia a flecha como se ele fosse um qualquer outro dos soldados do seu regimento. Sabendo que, no entanto, não é um qualquer outro. É o seu filho.

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