terça-feira, 16 de abril de 2013

MENTIRAS & DIAMANTES



Não há nada que se compare aos livros de José Rentes de Carvalho (n. 1930) na literatura portuguesa contemporânea. É preciso recuar a Eça de Queirós (1845-1900) para lhe vislumbrar um vínculo à ficção produzida em Portugal. Mentiras & Diamantes, o mais recente romance, aí está para o comprovar. A nota ao leitor reclama o carácter ficcional da obra, adverte-nos sobre o eventual abuso de um desnecessário processo de identificações, mas se há característica cativante neste livro, como, de resto, nos outros do mesmo autor, é a curiosidade de tipo jornalístico que lhe subjaz. José Rentes de Carvalho respiga nos factos as suas fantasias, mas não se fica por relatá-los, oferece-lhes a poesia de um olhar sagaz, desmonta-os, baralha-os, mistura-os numa urdidura onde vamos descobrindo tempos diversos e uma vontade de semear pistas sobre uma ética que rejeita leituras literais da acção humana. Não encontramos entre as personagens do autor gente apenas boa ou má. Encontramos gente onde os defeitos revelam as virtudes e as virtudes fazem sobressair os defeitos, encontramos falsos heróis assaltados pela dúvida, tormentos passados, memórias, recalcamentos, gente de carne e osso afirmando-se num plano da realidade que enjeita hipérboles, pelo menos tanto quanto declara fragilidades universais. Parece-me sintomático que a haver alguma moral neste livro, ela nos seja oferecida nas palavras recordadas de um morto, personagem ausente, pai de Jorge Ferreira, dito “conde”, proprietário de uma quinta algarvia que está no centro da trama. Cito: 

«Num momento alto de zanga, o pai tinha-lhe uma vez gritado que a vantagem das pedras, que ele com tanta dedicação estudava, era não falarem nem mexerem. As pessoas falavam, mexiam, atraiçoavam, roubavam, e isso era a vida, o dia-a-dia. Os tolos e os ascetas podiam dar-se ao luxo da torre de marfim, mas a existência era no rés-do-chão, com lama, fedores, golpes baixos, pontapés. Não havia aí bons e maus, porque conforme a ocasião, o interesse, a ganância, todos eram uma coisa e outra» (p. 249).

Poderão alguns considerar desencantada a perspectiva. Será, se por desencanto entendermos a maturidade de quem já não vai em cantigas ou se deixa iludir pelos amanhãs que cantam. A personagem do conde Jorge Ferreira é, toda ela, nas suas amarguras e traumas, nas marcas que transporta no corpo, no sangue e na alma, um estigma deste desencanto. Por isso se reserva, por isso se cala, por isso a depressão o atormenta. É uma personagem que nos perseguirá, martirizada pelos chamados excessos da revolução com consequências que estamos longe de conseguir imaginar. O autor não tece considerações sobre o assunto, apenas nos mostra, como quem revê o filme, o mundo como ele é: contraditório, problemático, paradoxal, violento, cruel. Mas ao lado desta crueldade, ele coloca momentos de um enlevo incomparável.
J. Rentes de Carvalho arrasta para a história o tráfico de diamantes, tema que lhe oferece ritmo e intriga, provocando no leitor desconfiança, curiosidade, suspense, mas o que verdadeiramente importa neste Mentiras & Diamantes é o encontro entre Jorge e a inglesa Sarah Langton. Os dois contrastam ao mesmo tempo que se aproximam. Ela procura o risco, ele anseia pelo recato, ela busca acção, ele pede sossego. São polos, ou talvez nem tanto, de uma teia onde se intersectam as vontades, os desejos, os anseios de pessoas diversas, advogados perversos e feitores fiéis que nem cães (enorme personagem, a do feitor Samuel), gente vulgar e mesquinha, intriguista ou patuscamente bisbilhoteira e tipos ardilosos, arrivistas, malandros das mais alta e baixa esferas, numa geografia que extravasa fronteiras (à semelhança do tráfico, aliás) e viaja por Portugal como quem, por artes mágicas, consegue deslocar-se à raiz de um povo, de uma nação.
Felizmente, não ouvirei dizer deste romance que é uma parábola da situação portuguesa actual . O cliché acaba desmentido pela universalidade das personagens. As referências lá estão, aos casos maiores («Isaltino, o Loureiro, o BPN, o Vara – que em rapaz se lembrava de ter visto ao balcão da Caixa, em Mogadouro – os submarinos, as PPP…», p. 110), aos media, ou até, num rasgo auto-humorístico hitchcockiano, a «um livro com um título esquisito, Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia» (p. 285). Aqui, a situação actual portuguesa é relativizada pela grandeza de um encontro universal. Daqui a uns anos, ninguém se lembrará do BPN (em boa verdade, poucos se lembrarão já), mas muitos se excitarão com o mergulho de Sarah no Douro, o passeio ao Carrascalinho ou simplesmente se divertirão com os boatos, as cenas de sexo, violência, fúria, ódio, náusea e traição que ocupam estas páginas.  Por mim falo, o conde persegue-me, não me larga. Mais ainda que Sarah. Não sei porquê, não percebo, mas não resisto a partilhar parte de um diálogo que devo ter lido, nos últimos dias, uma dezena de vezes: 

- Estive em Amsterdam. Fui a Londres, de corrida, na semana passada dei-me uns dias de preguiça em Marraquexe. Mandei-lhe uma mensagem, lembra-se?
- Bela cidade. Marrocos é ainda a minha paixão. Quem sabe se não será o lugar da minha velhice.
- Marrocos?
- Sim. Fui feliz em lugares que a outros nada dirão. Bîr Moghreïn, Tindouf, os oásis. Tenho saudade daquele céu, o brilho das estrelas é lá tão diferente. Em certas horas digo-me que vou, que devo ir. E continuo aqui.
- Porquê?
- Coisas que me prendem. Um certo cansaço, também. Medo de recomeçar.
- A melancolia da alma portuguesa.
- Talvez. E desencanto. Cobardia. Produtor de vinhos estava longe de ser o meu sonho, nem eu acreditaria que fosse o meu destino. Lidar com certa gente também não é ocupação que eleve o pensamento ou afine a sensibilidade.
Noite de alma, a temperatura uma carícia, em parte nenhuma ruído, os cães, deitados no chão, pareciam dormir. 

J. Rentes de Carvalho, in Mentiras & Diamantes, Quetzal Editores, Abril de 2013, pp. 205-206.

13 comentários:

Carlos disse...

É um grande escritor.

Anónimo disse...

Achei esta frase estranha: "...num rasgo auto-humorístico hitchcockiano..."
O Camilo já fazia isto há 200 anos!

JRC é o melhor escritor vivo, para mim.

luis boticas

Mário Montez disse...

o melhor escritor vivo, e o camilo já fazia isso há duzentos anos? de vez em quando desenterram-se nomes, parece que para se lhes dar uma boa morte. é só pensar em alguns. dois, por exemplo, são do maestro manuel de freitas. quando um deles morreu, o freitas apressou-se a ir buscar outro, vejam lá, ao islão. assim me parece o surgimento de rentes de carvalho. quanto ao resto, é um entusiasmo pouco lúcido e muito vulgar afirmar-se que este é o melhor romancista, poeta, pintor, livro, etc. que surgiu desde as calendas. convenhamos que rentes de carvalho não passa disso mesmo, de uma afirmação. porque é que, octogenário, só aparecem a falar nele agora? queixa-se, de viés, no blogue, de óscar lopes, por não o ter metido na historia da literatura portuguesa e, ainda de esguelha, vai instilando que foi por oscar lopes ser comunista, ser do 'partido'. é uma má razão, é um olhar turvo próximo da cirrose. na dita história da literatura portuguesa, abundam autores conservadores e, no entanto, óscar lopes e a. j. saraiva leram rentes de carvalho de certeza. digamos que estes exageros viraram moda. é preciso recuar a eça? ora, ora, batatas, e os outros todos que vieram depois de eça, bem mais amplos do que o muito louvado aqui? é uma boa acção dar alegria a um homem de oitenta e tal anos, quando nunca mais pensava tê-la. é vê-lo feliz a escrever no blogue e a falar de si próprio e dos outros da cátedra que o marketing lhe deu.

Isabel G disse...

Ó caro Sr. Montez, sabe o que é que lhe falta para ser um bom crítico? Tudo!

Não sabe V. Exa. do que fala e se J. Rentes de Carvalho não tem hoje o lugar que merece na literatura portuguesa, tal deve-se a figurinhas como o caro Montez que se dão de ares mas, não só não sabem do que estão a falar, como são incapazes de igualar o génio de J. Rentes de Carvalho.

Olhe para si próprio, atente no que diz,e sobretudo cresça, que isso de escrever tudo em minúsculas soa-me a birra adolescente em homem feito de corpo mas não de mente!

Faça um esforço e tente contagiar-se um pouco com a sabedoria dos sumérios!

É bem verdade que presunção e água benta, cada um toma a quer, e V. Exa. da primeira tomou tanto que perdeu a noção do ridículo!

João Bê disse...

Lido o senhor MONTEZ eu vinha aqui dizer algo. Porém, há tão pouco a dizer, quando ao lê-lo se percebe que o ilustre aqui verteu, opinativo, aquele que é afinal o seu problema, que me vou ver à brocha. Na verdade, a poucas linhas do seu desabrido texto já lhe estava a escapar a mãozinha para ele – o problema. Coitado. E depois, pouco mais houve do que um até ao fim confirmativo de que o dito nada tinha a ver com a escrita do JRC. Só por isso aqui estou, ainda que a custo, pois não tenho por hábito dar importância ao que a não possui. Bom, por isso e também porque afinal há opiniões que não merecem respeito. Sobretudo quando veiculadas assim, misturando coisas que não se misturam e arrogantes como só os ignorantes sabem emiti-las. Dito isto, não valendo a questão mais esforço que o já despendido, deixo a recomendação: vá por mim senhor MONTEZ, que ao contrário de si aprendi bem cedo a admirar o que é grande reconhecendo à légua a pequenez.

Mário Montez disse...

estimada sr.ª d.ª isabel g, génio, rentes de carvalho? eu não digo que a coisa está na moda? gostava de saber das suas leituras anteriores, do séc. xx. Desse século há romancistas que, não sendo génios como rentes de carvalho, são grandes talentos, e estão enterrados em silêncio. sabe porquê? porque estão mortos e cheira mal desenterrá-los. não é nice, não os entrevistam, não bufam como os perus a esticar as penas. o que é preciso, estimada sr.ª d.ª isabel g, é ter lata e os mortos não têm lata, e os vivos sempre escrevem melhor, nem que seja só porque os mortos nunca o fazem. Mas também há os vivos, não são muitos, mas há-os, que mereciam mais barulho do que rentes de carvalho, e estão-se nas tintas para a genialidade da moda, e falam pouco.

tive a curiosidade em saber quem me mordia as canelas. creio que o seu comentário acima é spam, para chamar a atenção para as vulgaridades do seu blog, tão lamentáveis que só consigui ler as primeiras linhas de cada post, então no 'soneto' só olhei para aquelas pobres rimas pobres, além de vesgas.

aconselho-a a pôr o teclado apenas em maiúsculas e tornar a escrever o que lá vi. deplorável,estimada sr.ª d.ª isabel g, deplorável. eu cá continuo como o e. e. cummings. use a sr.ª d.ª maiúsculas, pode ser que o lastimável assim passe a incautos e parolos.

Isabel Gonçalves disse...

Não precisa de dizer mais nada! Está bem patente no seu comentário que ficou V. Exa. furibundo e, histericamente abespinhado, desatou a disparar cegamente sem ver para onde!

Tenha V. Exa. a opinião que tiver, a respeito seja do que for, jamais deixará de ser a criaturinha mesquinha e minúscula que é!

E não se dê ao trabalho de responder. Já o coloquei na prateleira da indiferença, bem ao lado dos muitos idiotas empertigados com manias de grandeza!

Anónimo disse...

Quem disse que o Rentes de Carvalho é o maior escritor vivo (É para mim. É uma opinião pessoal que não interessa a ninguém, mas pronto, apeteceu-me dizer isto!), fui eu, Luís Alves, um gajo da vila de Boticas.
Então não era o Camilo que brincava com as coisas que ele próprio escrevia?!
Eu acho a Ernestina um grande livro mas se o senhor Montez me indicar melhor, eu agradeço. Não sei é se teremos gostos muito parecidos...

Mário Montez disse...

caro luís alves, pode ver que não me insurgi contra o que rentes de carvalho escreve, apenas o situei na linha mediana depois do seu exagero de "o melhor escritor vivo". o que eu escrevi não diminui nem acrescenta a sua qualidade ficcional. insurgi-me, sim, contra o que parece ser moda, desencantarem-se nomes para o ruído de que o marketing precisa. rentes de carvalho deixou-se apanhar, sendo certo que vida há só uma. não citarei, mas poderia citar um nome com obra de grande qualidade, é esta a qualificação, que, em idade aproximada à de rentes de carvalho, se deixou cair em esparrela igual. virou estrela de marketing. todos têm direito ao comportamento que bem entendam permitir e permitir-se. isso porém não me retira o direito de pensar e de escrever sobre quem, aos oitenta anos ou noutra idade, ouve o canto das sereias, sem que ninguém o prenda ao mastro para não ir ter com elas.

depois veio a d.ª miquelina t com aquela coisa do "génio". desculpa-se porque não sabe o que diz, só grita no meio do mercado da ribeira, cheia de pontos de exclamação. são estes exageros que critico e continuarei a criticar. escrevi o que escrevi porque tais comportamentos só visam o merchandising (porque vaidade cada um tem a que quer) e obnibulam ficcionistas vivos e mortos, e os mortos que escreveram na nossa língua são cada vez menos lidos, sei lá se até desconhecidos hoje para quem gosta de ler como (boa) ocupação de tempo. não vou aqui armar aos cágados e citar nomes e obras. se quiser escreva para mrmtez@gmail.com, creia que lhe indicarei uma mão-cheia de obras e autores portugueses, nem melhores nem piores. para mim e para muitos esse porto-benfica não se põe, porque o árbitro já apitou três vezes e o resultado não se pode alterar, nem sequer na secretaria. digo ainda, para bom entendimento, que versos e outras coisas que redigi (fujo aqui do verbo escrever) não passaram da idade do acne. eram apenas borbulhas adolescentes. nunca mais voltaram, felizmente. neste país já há medíocres que bastem: medram, a todos os níveis, como ervas daninhas, entre aplausos e paspalhos à beira-mar.

JSP disse...

O montez apresenta a celebrada patologia da " dor de corno literária/ideológica"...

Manel disse...

É escusado. A nossa literatura é estanque aos montezes que não sabendo escrever fazem da vingança, contra os que sabem, a sua prova de vida. Obrigado Rentes de Carvalho.

Anónimo disse...

Ó Senhor Montez, foda-se, eu tenho que aturar cada uma. Ó que caralho!
Quer dizer, eu descobri o Rentes de Carvalho há uns 7 ou 8 anos e adorei, achei o máximo. Li livros antigos que ainda tinham o preço em escudos mas que já não estavam à venda. Mas como o homem não era conhecido, quando eu falava dele com muita admiração, as pessoas achavam que eu era maluquinho, que eu tinha a mania! Agora que o homem ganhou algum nome, vem cá você dizer-me que eu gosto dele porque está na moda?!
Realmente, o que eu tenho que aturar...
Só lhe digo uma coisa: você não é homem para chutar para cá 2 ou 3 nomes dos tais que você acha o máximo, você não é amigo da cultura e de espalhar o conhecimento, já vi que você não vai dizer nada. E eu bem gostava de apanhar qualquer coisa melhor que o Rentes.

Comecei as primeiras 100 páginas do Mentiras e Diamantes e acho de altíssima qualidade, é mesmo muito bom. Não conheço por aí quem escreva a este nível, que é excelente!

luis boticas

Isabel G disse...


http://facedaletra.blogspot.pt/2013/04/j-rentes-de-carvalho-ha-que-le-lo-ponto.html