sábado, 8 de junho de 2013

SERVIDÕES


Não se deixa fotografar, não dá entrevistas, raramente publica. Dir-se-á que não aparece, mas está sempre entre quem o leia - como uma espécie de Deus ou de demónio, uma sombra cuja voz nos persegue. Há palavras que são só dele (“as mães”, “os selos”, “orvalho”), envergonhamo-nos de as pronunciar. Talvez por isso esgote em dois dias. Uma primeira edição de Herberto Helder tem um valor incalculável nos alfarrabistas. O último livro, publicado há duas semanas e esgotado em três dias, já anda a ser vendido na candonga a mais do triplo do preço de capa. Um cliente comprou-me nove, fazendo questão de reforçar que mais houvesse mais compraria. Herberto tornou-se investimento material, negócio, o que nada nos diz sobre a sua poesia mas muito revela acerca da poesia no actual mundo português. Do outro não falo que não conheço. A poesia é um animal em vias de extinção, os poetas são dentes de marfim. Tem ainda Herberto uma outra particularidade, é endeusado por quem escreve contra ele, copiado por muitos, decalcado sem vergonha, e divinizado por quem afirma a pés juntos ser a poesia do tipo da sua (mais ou menos) o embuste dos presunçosos. “É o maior poeta vivo”, afirmam todos aqueles quantos estão em mãos da misteriosa fita métrica do génio. Tudo isto é desprezível, ou seja, o fenómeno nada tem que ver com a escrita, o poder da linguagem, a força do ritmo, nada tem que ver e ameaça, como sempre faz, desfigurar a beleza do “poema puro”. O fenómeno é a “merda” onde chafurdam as moscas quotidianas, os "burrocratas" da "vida administrativa". Há que enxotá-las e fazer como se não existissem, é o melhor remédio. Concentramo-nos na escrita, nas palavras, e nela nos isolamos como quem procura refúgio da banalidade dos dias. Mas dizer palavras, neste caso, é um eufemismo. Na poesia de Herberto Helder cada palavra é uma nota musical, e ainda que as torrentes metafórica e imagética sejam agora barradas pelo tom intimista, não deixa de assim ser também quando ele parece estar a escrever-nos mais para os olhos do que para os ouvidos. Há neste livro uma vontade de mostrar o que pode ser mostrado do interior de uma cabeça, uma cabeça complexa, feita de memórias (lembradas e esquecidas) e de experiências (inventadas e vividas). A prosa de índole biográfica que abre Servidões (Assírio & Alvim, Maio de 2013), livro todo ele contaminado pela biografia, oferece-nos um olhar sobre a infância que é também “prefácio e posfácio” de uma continuidade criativa aqui revelada: «Quando os lemos lado a lado, a todos estes poemas, sabemos estarem eles entregues ao serviço de uma só inspiração» (p. 15). Subentende-se a ideia que fundamenta o título. O poeta é um servo da palavra, seus poemas estão ao serviço de uma só inspiração. Vida e poesia confundem-se, mormente na sua brevidade, o gerúndio arrasta o tempo no espaço como pelos dias se arrasta a vida. Não me recordo de muitos poemas de Herberto onde o quotidiano entre tão destemidamente como nos poemas de Servidões. A “vida administrativa” e seus “burrocratas” entram num contexto testamental, pois é impossível ler estes poemas sem notar neles esse sentimento de uma morte próxima que a dobra dos oitenta anos faz estremecer. Daí a dúvida existencial que surge num poema onde ao ofício cantante se sobrepõe o ofício de viver (Pavese): «estou aqui para quê porquê e como? / e mal pergunto sei que morro todo entre pés e cabeça, / e restam apenas estas linhas como sinal do medo: / pó, poeira, poalha» (p. 51) A morte que ecoa e paira sobre cada página não enjeita uma paisagem onde o novo se encontra com o velho, o vivo com o morto, Eros com Tanatos, e a brevidade do poema representa, claro está, a brevidade da própria vida, uma pequenez onde cabe o mundo inteiro, porque o mundo é pequeno e ínfimos são os homens, esse mundo que é o nosso, a linguagem, o mundo do poeta que canta: «dos trabalhos do mundo corrompida / que servidões carrega a minha vida» (p. 19). Que remates carregam estes dois versos às portas de um poema onde a morte iminente pede resumo? Não há exame de consciência nem confissão, há antes uma espécie de oferenda que se confunde com o lamento do índio a invocar as forças da Natureza no alto da sua dor não académica. Desde sempre se vislumbra na poesia de Herberto Helder esta consciência de uma pureza primitiva que transcende as formas da civilização ocidental. A voz que ressoa é a voz de uma entrega, como a voz do delírio que solta o corpo das formas, o liberta das leis, e desse modo o consubstancia. Servidões é a súmula que a vida exigia e o ofício de vivê-la consente, um livro entre os melhores que Herberto Helder escreveu, senão o melhor, porque nele os véus são rasgados e as imagens ganham uma força orgânica, de bronze, que a técnica esculpe (Giacometti em epígrafe) com rigorosa paixão:

cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes eternas,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo e tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o trespassava pela metade das músicas
- e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras

1 comentário:

Anónimo disse...

Estamos perante o chamado "empreendedorismo abelhudo" quando se observa esse tipo de comportamento. Sabe-se que a poesia, mesmo não estando entre os poetas, nada tem a ver com esses estratagemas para corromper os objectos. Cada atitude um disparo fotográfico da realidade invisível de cada um, que são muito e cada vez mais.

Um abraço de fugida