Desde cedo habituados a discriminar o mundo sob uma
perspectiva de género, vestimos os meninos de azul e as meninas de cor-de-rosa.
O comércio organiza-se em função destas discriminações, orientando-se para o
público com espaços diferenciados. Temos lojas de roupa para homem e lojas de
roupa para mulher, os barbeiros e as cabeleireiras, a revista Maria e o jornal
A Bola. A própria arte, lugar onde as fronteiras se esbatem facilmente,
parece por vezes ser desenvolvida tendo em vista públicos definidos a partir de
estereótipos de género. Os livros, que na minha pobre cabeça serão sempre como
os anjos (não têm sexo), também sofrem de estratificações deste tipo. Por isso
as meninas começam por ler as Gémeas e os rapazes preferem a colecção Feras
& Heróis. O western é, em certa medida, vítima do estigma, embora muitos
dos melhores coloquem mulheres no centro das atenções. São disso exemplo filmes
excepcionais tais como Rancho Notorious/O Rancho das Paixões (1952), Johnny Guitar
(1954) ou mesmo True Grit/Velha Raposa (1969).The Furies/Almas em Fúria, de
Anthony Mann (1906-1967), é outro exemplo de um western que parece ter sido
pensado à imagem e semelhança das suas personagens femininas, nomeadamente da
personagem interpretada por Barbara Stanwyck. Filha do napoleónico rancheiro T.
C. Jeffords (Walter Huston), Vance Jeffords mantém com o pai uma relação de
amor/ódio. Vive numa propriedade incomensurável chamada Fúrias, palco de um
conflito antigo com ocupantes mexicanos, e conta ficar a geri-la em
breve. Beneficia da relação distante que o pai mantém com o filho, um indivíduo
razoável, mas inconveniente, que aparece numa meia dúzia de cenas para reforçar
a relação de interdependência entre pai e filha. Anthony Mann coloca muitas
vezes ambas as personagens em planos que chegam a insinuar uma relação
incestuosa, no sentido de um amor que é mais do que filial. É uma relação
apaixonada onde vêm à tona sentimentos de admiração e reverência. Mas há nesta relação
obsessiva uma tremenda fragilidade que se torna evidente quando o pai traz para
o rancho uma viúva poderosa com quem se pretende casar. A partir desse momento,
assistiremos no palco a um ambiente insidioso, cheio de subtilezas e
de perfídia. Pura tragédia grega. As personagens tornam-se manipuladoras, a
ambição tolda-lhes a humanidade. São frequentes nos diálogos metáforas que
colocam num mesmo plano comportamentos humanos e animais. O interesse passa a dominar
todas as decisões, a razão cede por completo às paixões deixando-nos na ilusão
de continuar a segurar os cavalos pelas rédeas. É como se entrássemos no mundo
empresarial moderno, com seus ardis, casamentos por conveniência, manipulações
e chantagens que nunca chegam a sê-lo porque são exercidas na penumbra de uma
pressão psicológica difícil de determinar. A palavra começa a contar tanto
entre os intervenientes como as TCs, notas sem qualquer valor fabricadas pelo
próprio T. C. Jeffords para pagar aos credores indefesos. É uma palavra oca
como a que hoje obriga a uma desconfiança insuportável entre tudo e todos. Porém,
Vance mantém com Juan Herrera, um dos ocupantes das Fúrias que o pai pretende
expulsar, um elo antigo de cumplicidade que contribuirá para agudizar o conflito
familiar. Pelo meio, terá também de se livrar da madrasta. Observem a intensidade
dramática do confronto, num western onde as mulheres pontuam toda a acção:
O filme desenrolar-se-á então no sentido de uma curva de
Gauss, com Vance a entregar-se por completo ao ódio que o pai lhe passara a
inspirar. Um ódio que, alcançados os objectivos, volta a dar lugar à admiração.
Tudo é teatro entre aquelas personagens, tudo é representação. Símbolos de uma
sociedade maquilhada pela vaidade, pela ganância, pelo orgulho, pela ambição,
T. C. Jeffords e Vance Jeffords podiam ter sido requisitados em múltiplas
famílias que se confundem com os seus impérios empresariais na
contemporaneidade. Vance é a menina do papá que se vê sujeita à terrível prova de mostrar que os tem no sítio para poder substituir o pai nas Fúrias. O talento de Mann está em, tal como acontece nos westerns de
John Ford, elevar as suas personagens à condição de deuses universais sem os deslocar para o Olimpo. São personagens-tipo sem tempo nem geografia, mas terrenos, demasiado terrenos. O tempo
não passa pelas atitudes nem pelos comportamentos ali representados, apenas
lhes altera o cenário. Infelizmente.
P.S. : Depois de ler o texto, a minha mulher alertou-me para um pormenor que me esqueci de referir. Na realidade, trata-se de um pormenor assaz relevante. T. C. Jeffords está falido, não existem compradores interessados no gado espalhado pelas Fúrias. Este facto torna absurda, em certa medida, a luta pelo poder naquele rancho. Todos querem as Fúrias, um rancho falido. Para quê? Julgo haver na falência das Fúrias uma espécie de extensão da falência familiar, uma falência de valores humanos essenciais. O próprio Jeffords, depois de conseguir hipotecar a propriedade por 100.000 dólares, serve-se de 50.000 para afastar um potencial noivo da filha e dos restantes 50.000 para comprar o amor da viúva Flo Burnett (Judith Anderson). Portanto, mesmo falidos, os Jeffords não parecem tão preocupados com o dinheiro como parecem empenhados em preencher o vazio das suas próprias vidas. Desencontrados do amor, com a sombra da falecida senhora Jeffords a pairar sobre a casa (uma mulher que tudo teve para de nada usufruir, como recorda Clay Jeffords em conversa com a irmã Vance), vivem apenas obcecados com a afirmação do poder e do domínio de uns sobre os outros.
P.S. : Depois de ler o texto, a minha mulher alertou-me para um pormenor que me esqueci de referir. Na realidade, trata-se de um pormenor assaz relevante. T. C. Jeffords está falido, não existem compradores interessados no gado espalhado pelas Fúrias. Este facto torna absurda, em certa medida, a luta pelo poder naquele rancho. Todos querem as Fúrias, um rancho falido. Para quê? Julgo haver na falência das Fúrias uma espécie de extensão da falência familiar, uma falência de valores humanos essenciais. O próprio Jeffords, depois de conseguir hipotecar a propriedade por 100.000 dólares, serve-se de 50.000 para afastar um potencial noivo da filha e dos restantes 50.000 para comprar o amor da viúva Flo Burnett (Judith Anderson). Portanto, mesmo falidos, os Jeffords não parecem tão preocupados com o dinheiro como parecem empenhados em preencher o vazio das suas próprias vidas. Desencontrados do amor, com a sombra da falecida senhora Jeffords a pairar sobre a casa (uma mulher que tudo teve para de nada usufruir, como recorda Clay Jeffords em conversa com a irmã Vance), vivem apenas obcecados com a afirmação do poder e do domínio de uns sobre os outros.
4 comentários:
há de facto "discriminação".
o mundo sempre foi dividido em duas partes desiguais.
o catolicismo também terá as suas culpas, para variar.
mas somos diferentes, e não é apenas uma constatação física.
não precisamos é de ser guiados, podemos e devemos ser nós a encontrar as diferenças...
irrita por vezes nós próprios não resistirmos ao estereótipo, de tão naturalmente ele se instalar no nosso quotidiano. enquanto revia o filme pensei muitas vezes: ora aí está um filme onde as gajas querem ser gajos.
O filme de que te falei, comprado por 1 Euro na FNAC é este. Mas ainda nem vi. E olha a actualidade do início do texto.
Ricardo
É verdade, amigo. :-)
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