segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

UM ANO DE LEITURAS

Tomando como referência a data de edição, escolhi um livro por mês dos publicados este ano em Portugal. O critério é apertado, obrigando-me a deixar de fora algumas leituras agradáveis e até surpreendentes. Ainda assim, são exemplos de um ano onde, feito o exercício, são melhores as lembranças do que piores as memórias. O tempo ensina-nos a recalcar com eficácia, a leitura distrai-nos e matura-nos. Neste domínio dos livros, e porque deles ando rodeado, devo acrescentar apreensões relativas ao afunilamento aparentemente inevitável dessa coisa chamada mercado. A megalomania do Projecto Vila Literária de Óbidos não faz esquecer o fecho da Livraria Sá da Costa, simbólico de uma decadência assustadora nos hábitos de consumo culturais, e os protestos justificados dos chamados livreiros independentes, por ocasião da Feira do Livro de Lisboa e, mais recentemente, no contexto das campanhas de Natal levadas a cabo pelas grandes superfícies onde se comercializam livros. Isto aconteceu no ano em que uma editora de seu nome & etc comemorou 40 anos de edição livre, no ano em que a Relógio d’Água viu o seu esforço brindado com mais um Prémio Nobel no catálogo, no ano em que a Antígona continuou a resistir com excelentes livros e sem ceder um milímetro à doença dos mercados, no ano em que Maria Teresa Horta deu o exemplo recusando receber das mãos de um imbecil inimigo do saber, da cultura e do conhecimento, o Prémio D. Dinis, mas também no ano em que os livros de Herberto se transformaram num apetecível investimento mercantilista e a poesia portuguesa contemporânea saiu ridicularizada com um infeliz artigo publicado no Ípsilon e o jornalismo literário perdeu uma boa oportunidade de se redimir com um exercício falhado de sub e sobrevalorizações. Fiquem, pois, os livros:


Sam Savage, As Recordações de Edna
Tradução de Sofia Gomes, Planeta Manuscrito
Janeiro


Foi objecto de justificadas constelações no jornalismo especializado, mas acaba estranhamente esquecido nas tradicionais listas de fim-de-ano. Edna é uma personagem para a vida e Sam Savage um grande escritor. Escrevi sobre o livro aqui.

Afonso Cruz, O Livro do Ano
Editora Objectiva / Alfaguara
Fevereiro

Afonso Cruz tem vindo a transformar-se num dos escritores portugueses contemporâneos mais agradáveis de acompanhar. Além do romance Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, publicou no início do ano este livro onde texto e ilustração se equilibram com inquestionável beleza.

Flann O'Brien, Uma Caneca de Tinta Irlandesa
Tradução de Maria João Freire de Andrade, Cavalo de Ferro
Março


At Swim-Two-Birds marca a chegada de Flann O’Brien, pseudónimo de Brian O’Nolan (1911-1966), às livrarias portuguesas. Romance ao mesmo tempo experimental e satírico, mantém uma impressionante pertinência. É um dos melhores livros que alguma vez li.

J. Rentes de Carvalho, Mentiras & Diamantes
Quetzal
Abril

Por razões pessoais, este original de J. Rentes de Carvalho deixou de ser para mim apenas um livro como os outros. Levou-me até ao Carrascalinho, numa peregrinação solitária que jamais esquecerei. Sobre o objecto em si, disse aqui de minha justiça.

Herberto Helder, Servidões
Assírio & Alvim
Maio


Em meia dúzia de dias, talvez nem tanto, a edição estava esgotada. Encontra-se on-line inflacionado na ordem dos 300%. Quem o quis partilhar em versão PDF viu-se travado pelos capangas do grupo editorial que detém os direitos de comercialização. Nada disto tem que ver com poesia, o autor também não pode ser responsabilizado. Sobre a estupidez humana paira a sua poesia.
Estradas Secundárias - Doze Poetas Irlandeses
Selecção, posfácio e tradução de Hugo Pinto Santos
Artefacto
Junho
Longe de ser perfeita, esta antologia constitui um esforço louvável de uma pequena editora na divulgação da poesia feita num país onde, de facto, se gosta de poesia. Em edição bilingue, pode e deve ser porta aberta ao encontro de imensos poetas imperdíveis.

Pär Lagerkvist, O Anão
Tradução de João Pedro de Andrade, Antígona
Julho
O sueco Pär Lagerkvist foi Nobel da Literatura em 1951. Lembrados disso pela editora refractária Antígona, ficámos a conhecer O Anão. Pequeno romance onde as ambiguidades humanas assumem uma clareza rara. Conto escrever sobre ele em breve.

David Priestland, A Bandeira Vermelha - História do Comunismo
Tradução de Manuel dos Santos Marques, Texto Editores
Agosto

Esta história do comunismo tem o interesse particular de olhar para a política na sua relação com as artes e a cultura. Trabalho extenso, surge em Portugal no ano em que Cunhal foi líder de audiências e o PCP readquiriu força eleitoral. Escrevi sobre o livro aqui.

Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação
Caminho
Setembro
Estou a ler, vou lendo, hei-de ler. Gonçalo M. Tavares tem sobre os da sua geração a vantagem de reflectir. Não se limita a pensar, esforça-se por ir mais além e vai. Acompanhamo-lo nesse nomadismo intelectual e nunca nos arrependemos. Para lá dos géneros e dos tipos, essencial.

John Fante, Estrada Para Los Angeles
Tradução de Vasco Gato, Editora Objectiva / Alfaguara
Outubro
Chegaram-me às mãos na mesma altura. Este e Histórias de Loucura Normal, de Charles Bukowski. Ambos com tradução do poeta Vasco Gato, desempoeiram os dias. Fante andava a ser publicado pelas Edições Ahab, depois da Teorema ter editado há anos A Confraria do Vinho. Boas companhias.
& etc - Uma Editora no Subterrâneo
Coordenação de Paulo da Costa Domingos, Letra Livre
Novembro

Disse e repito: um dos livros mais importantes publicados este ano em Portugal. Colocando de lado a dimensão comemorativa, importa sublinhar aqui o exemplo de resistência e a capacidade de, contra todas as expectativas, manter os náufragos à superfície.

Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar - Retorna
Mariposa Azual, 3.ª Edição
Dezembro

Discordo de quem afirma ter 2013 sido um bom ano para a poesia portuguesa, mas também não me perturbarei com o assunto. Tenho ali na secretária uma pilha de livros para ler. Este será, em parte, relido. Em parte lido. Nunca um poema se lê duas vezes da mesma maneira. Saúde,

2 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Foi um bom ano.
Desses, só li o Lagerkvist (numa edição da Portugália); lembro-me de ter gostado, mas desvaneceu-se-me. Tenho o do O'Brien na fila.

Vicente Vivaldo Fino disse...

Parecem-me excelentes propostas, assim como me parece de uma estupidez extrema a questão "Herberto Hélder". Enfim, valham-nos os bons livros que ainda vamos conseguindo encontrar e comprar.