Não foi só uma bola de ouro que Cristiano Ronaldo ganhou na
passada segunda-feira. Com aquelas lágrimas, conquistou para a opinião pública
uma dimensão humana que não tinha. Muitas pessoas olham para Ronaldo com
desconfiança. Riquíssimo, inspira uma espécie de raiva, quando não inveja,
perante as injustiças do mundo. Como pode ganhar tanto dinheiro um indivíduo
cuja profissão é jogar à bola? Por detrás do seu talento, esconde-se porém um
trabalho atlético e técnico tremendo. Muito treino, muito esforço, muita prática,
espírito de sacrifício. O mesmo acontece com os melhores artistas, salvo raríssimas
excepções de talento natural que, como é óbvio, não garantem fama nem proveito.
Fama e proveito ficam para jogadores da bola, popstars, bestsellers, estrelas
de Hollywood, alguns artistas. A fama de Ronaldo gerava também aquilo a que vou
chamar convicção de superioridade moral por parte dos seus espectadores menos
convencidos. É só um jogador da bola, dizem; com a selecção não faz nada,
lamentam; tanto dinheiro e não dá nada a ninguém, reclamam… Apesar de tudo, o
desejo da estrela é poder comer um gelado descansadamente na companhia do filho
numa esplanada qualquer. Sem que o macem com fotografias e autógrafos, só os
dois, ele e o filho, sossegadamente a comer um gelado. Aquelas lágrimas
fazem-nos crer neste desejo e no direito que Ronaldo tem de cumpri-lo,
chamaram-no à terra para que todos pudessem ver o quão igual ele é, no
essencial, a cada um de nós. As lágrimas outrora vertidas em jogos com a
camisola da selecção nacional deixaram de ser de crocodilo. São lágrimas que relembram a doutrina secreta da deusa Tripura Sundari, também chamada de Lalitha,
a mais bela dos três mundos:
A beleza feminina é realmente a principal fonte de prazer. Todos
são atraídos e encegueirados por ela, até os sages. Mas repara atentamente, Príncipe,
no que é afinal tanto o corpo masculino como o feminino. É uma gaiola feita de
ossos, revestidos de carne embebida em sangue e mantidos juntos aos tendões. Uma
pele coberta de pêlos estende-se a toda a volta. No interior não se nos depara
senão bílis, flegma e escória de excrementos. Fabricado a partir do esperma e
do sangue, ele vem ao mundo pela mesma passagem que a urina.
Convenhamos não ser o mais celestial dos berços, este por
onde a urina passa. Antonin Artaud disse praticamente o mesmo na famigerada
Carta a Pierre Loeb (tradução de Aníbal Fernandes):
(…)
Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos
que comeram,
digeriram,
dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeições,
40 mil sonos,
40 mil roncos,
40 mil bocas acres e azedas ao despertar
(…)
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