Foi-me
oferecida recentemente a oportunidade de assistir ao ensaio de uma peça
teatral. Sala despida de público, actores desmaquilhados, apenas técnicos, luz,
corpo. É uma outra perspectiva que se tem do palco. A cenografia minimalista
gera em nós a ilusão de que estamos dentro, e não fora, da representação. Quebram-se
barreiras entre plateia e cenário, ambos são uma extensão do outro. Somos parte
integrante de um acto que ainda não é autópsia, mas nos aproxima
significativamente do esqueleto ou, pelo menos, da nudez da peça: o texto. Desconhecia
por completo Martin Crimp (n. 1956), dramaturgo britânico com carreira iniciada
na década de 1980. Definitivamente as Bahamas, peça que o Teatro da Rainha
estreará amanhã, data de 1987. A referência histórica não é determinante, mas
ajuda-nos a situar as personagens que temos pela frente. De resto, esta é uma
das dimensões que me parecem mais relevantes na dupla Milly & Frank: são um
casal cuja história se faz quase invariavelmente da história de terceiros. A
sua geografia é o ambiente doméstico onde exercitam a memória, folheiam álbuns
de fotografias, recordam situações passadas, discutem o sexo dos anjos. O vínculo que os une é uma espécie
de excitação do vazio que transforma a geografia doméstica num espaço
desconfortável, mesmo cruel. Sabemos desde o início que se mudaram para onde estão
por causa do silêncio, e esta palavra, silêncio, possui no contexto do casal em
cena uma carga simbólica importantíssima. Milly é palavrosa, não se cala,
parece incapaz de viver com o seu ambicionado silêncio, quebra-o
constantemente, exerce sobre a relação um poder castrador. Não resisto a
citá-la: «a primeira coisa que fizemos quando cá chegámos foi ir ao jardim, não
foi Frank, porque era Verão e as flores estavam um espanto. E depois o Frank
pegou-me no braço, o que não está nos seus hábitos, e depois disse-me escuta,
não foi Frank, escuta. Então eu disse-lhe o que é que tu queres dizer, escuta.
Ele disse nada, escuta apenas». Frank apresenta um ar sorumbático, enfastiado,
do qual se solta apenas na ausência da mulher. Quando ela se afasta, ele
liberta-se e adquire um rosto humano, perverso, sobe-lhe o sangue à pele. É como
se apenas conseguisse ser homem na ausência da mulher. Que queria ele dizer
quando lhe disse “escuta”? Talvez quisesse dizer “cala-te”, talvez quisesse
dizer “escuta-me”. Talvez o silêncio seja já a única forma de se escutarem um
ao outro. Os diálogos que mantêm, as discussões que cultivam, de tão aparentemente
vulgares, traem-nos. É preciso escutá-los nas entrelinhas, nos silêncios, nas
pausas. Tingidos de equívocos e de contradições, podem parecer humorísticos a
quem não lhes descubra a face verdadeiramente trágica. Por detrás das
gargalhadas esconde-se o cadáver ao mesmo tempo grotesco e absurdo das relações
humanas, aquela excitação do vazio que preenche as horas, a vida arrastada
pelos seus traumas, pelas suas feridas mais ou menos abertas, pelos
recalcamentos. Daí que o momento explosivo da acção se desloque do casal para a
jovem que com eles partilha o espaço. Marijka vive, de facto, num outro planeta
que não o do casal Taylor. Adoptada pelo casal, cumpre as tarefas de uma
empregada doméstica e ocupa o lugar vago do filho ausente. Será nela que vislumbraremos
a chama que o casal já não tem, sinais de vida numa casa onde o passado ocupa o
presente e o futuro parece não ter lugar. A beleza de Marijka não se esgota na
figura física jovial, é a beleza do terror a emergir do manto de futilidades
que encobre a verdade. Ela representa o momento da revelação, o momento em que
de facto algo de relevante se escuta, o momento em que os disfarces são
rompidos pela verdade com uma confissão sem subterfúgios nem evasões. Inicialmente
escrita para rádio, Definitivamente as Bahamas integra uma trilogia de que
fazem também parte as peças A Kind of Arden e Spanish Girls. São retratos
impiedosos da classe média britânica, ao mesmo tempo que denotam as
fragilidades do mundo doméstico e expõem os segredos da instituição familiar. A
peça pode e deve ser vista no Teatro da Rainha, quintas a sábados, às 21h30m,
com encenação de Fernando Mora Ramos e interpretações de Isabel Lopes (Milly),
Carlos Borges (Frank) e Inês Barros (Marijka). Em cena até 8 de Março.
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