quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS

Foi-me oferecida recentemente a oportunidade de assistir ao ensaio de uma peça teatral. Sala despida de público, actores desmaquilhados, apenas técnicos, luz, corpo. É uma outra perspectiva que se tem do palco. A cenografia minimalista gera em nós a ilusão de que estamos dentro, e não fora, da representação. Quebram-se barreiras entre plateia e cenário, ambos são uma extensão do outro. Somos parte integrante de um acto que ainda não é autópsia, mas nos aproxima significativamente do esqueleto ou, pelo menos, da nudez da peça: o texto. Desconhecia por completo Martin Crimp (n. 1956), dramaturgo britânico com carreira iniciada na década de 1980. Definitivamente as Bahamas, peça que o Teatro da Rainha estreará amanhã, data de 1987. A referência histórica não é determinante, mas ajuda-nos a situar as personagens que temos pela frente. De resto, esta é uma das dimensões que me parecem mais relevantes na dupla Milly & Frank: são um casal cuja história se faz quase invariavelmente da história de terceiros. A sua geografia é o ambiente doméstico onde exercitam a memória, folheiam álbuns de fotografias, recordam situações passadas, discutem o sexo dos anjos. O vínculo que os une é uma espécie de excitação do vazio que transforma a geografia doméstica num espaço desconfortável, mesmo cruel. Sabemos desde o início que se mudaram para onde estão por causa do silêncio, e esta palavra, silêncio, possui no contexto do casal em cena uma carga simbólica importantíssima. Milly é palavrosa, não se cala, parece incapaz de viver com o seu ambicionado silêncio, quebra-o constantemente, exerce sobre a relação um poder castrador. Não resisto a citá-la: «a primeira coisa que fizemos quando cá chegámos foi ir ao jardim, não foi Frank, porque era Verão e as flores estavam um espanto. E depois o Frank pegou-me no braço, o que não está nos seus hábitos, e depois disse-me escuta, não foi Frank, escuta. Então eu disse-lhe o que é que tu queres dizer, escuta. Ele disse nada, escuta apenas». Frank apresenta um ar sorumbático, enfastiado, do qual se solta apenas na ausência da mulher. Quando ela se afasta, ele liberta-se e adquire um rosto humano, perverso, sobe-lhe o sangue à pele. É como se apenas conseguisse ser homem na ausência da mulher. Que queria ele dizer quando lhe disse “escuta”? Talvez quisesse dizer “cala-te”, talvez quisesse dizer “escuta-me”. Talvez o silêncio seja já a única forma de se escutarem um ao outro. Os diálogos que mantêm, as discussões que cultivam, de tão aparentemente vulgares, traem-nos. É preciso escutá-los nas entrelinhas, nos silêncios, nas pausas. Tingidos de equívocos e de contradições, podem parecer humorísticos a quem não lhes descubra a face verdadeiramente trágica. Por detrás das gargalhadas esconde-se o cadáver ao mesmo tempo grotesco e absurdo das relações humanas, aquela excitação do vazio que preenche as horas, a vida arrastada pelos seus traumas, pelas suas feridas mais ou menos abertas, pelos recalcamentos. Daí que o momento explosivo da acção se desloque do casal para a jovem que com eles partilha o espaço. Marijka vive, de facto, num outro planeta que não o do casal Taylor. Adoptada pelo casal, cumpre as tarefas de uma empregada doméstica e ocupa o lugar vago do filho ausente. Será nela que vislumbraremos a chama que o casal já não tem, sinais de vida numa casa onde o passado ocupa o presente e o futuro parece não ter lugar. A beleza de Marijka não se esgota na figura física jovial, é a beleza do terror a emergir do manto de futilidades que encobre a verdade. Ela representa o momento da revelação, o momento em que de facto algo de relevante se escuta, o momento em que os disfarces são rompidos pela verdade com uma confissão sem subterfúgios nem evasões. Inicialmente escrita para rádio, Definitivamente as Bahamas integra uma trilogia de que fazem também parte as peças A Kind of Arden e Spanish Girls. São retratos impiedosos da classe média britânica, ao mesmo tempo que denotam as fragilidades do mundo doméstico e expõem os segredos da instituição familiar. A peça pode e deve ser vista no Teatro da Rainha, quintas a sábados, às 21h30m, com encenação de Fernando Mora Ramos e interpretações de Isabel Lopes (Milly), Carlos Borges (Frank) e Inês Barros (Marijka). Em cena até 8 de Março.

Sem comentários: