É o mais comum: as pessoas vestem-se, maquilham-se,
algumas fazem plásticas, operam, disfarçam, escondem, usam adereços,
transformam-se em adereços. A vida é na mais vasta extensão dos seus dias um
exercício de dissimulação. Por detrás das máscaras, um corpo. A verdade há-de
ser tudo junto, não a confundo com o lado menos nobre do exposto nem a
esgoto no ordinário, no mero exibicionismo. Mas agrada-me quando encontro num
escritor, sobretudo num génio, algo que o faz descer à terra. Precavido acerca do
carácter abstracto das palavras, julgo ser perceptível esse momento em que o
idealismo se transforma em comezinho, o lirismo curva-se ao prosaísmo e os
versos fazem das tripas coração. Na obra aqui citada, há um conjunto de
epigramas separados dos outros escritos por Goethe. São um Suplemento aos
«Epigramas». Ora, como em matéria alimentar, também na poesia por vezes o
suplemento faz a diferença:
Não me posso admirar de Cristo Nosso Senhor ter gostado
De viver com putas e pecadores. Pois se o mesmo se passa
comigo!
Nota: por outras palavras, Bukowski disse o mesmo. Goethe
& Bukowski: dois sócios, a mesma firma.
«Menina!», chamo eu a donzela. «Menina, o senhor não está
em casa?»
Mas ela não me ouve; o chamamento não lhe chega aos
ouvidos.
Outros jogos, mais doces, a ocupam.
«Vamos tomar café, meu forasteiro!» - com isso, o que ela
quer é comer-me uma punheta.
Sempre detestei o café, amigos, e com razão.
Nota: a interpretação que o poeta faz do convite,
provavelmente sugerido por uma daquelas putas aludidas no primeiro epigrama, é
subjectiva. Seria importante perceber onde a tradução traiu o original.
«Comer-me uma punheta» - o que é?
Não digo que não gosto de mancebos, mas prefiro as
donzelas,
Porque se me farto dela como donzela, sempre dela me
posso servir como mancebo.
Nota: Gregório de Matos escreveu algo muito parecido, talvez mais cruamente. Fica para depois.
Em vez de «rabo teso» dá-me outra palavra, oh, Priapo,
Que eu, alemão, como poeta sou digno de dó.
Em grego chamava-te «phallos», maravilhoso som para
qualquer ouvido,
E também em latim «mêntula» é palavra digna.
«Mentula» vem de «mens», o rabo fica atrás,
E por trás é coisa que nunca me deu grande gozo.
Nota: impossível determinar se o gozo se afere de uma
postura activa ou passiva. Pelo epigrama anterior, depreendemos que o poeta se
refere a levar no e não a ir ao. Ainda assim, há algo neste epigrama que desafia
qualquer hermenêutica: as pontes entre grego antigo, línguas alemã e portuguesa.
O que mais me apoquenta: Bettine vai ficando cada vez
mais ágil,
Mais flexíveis se vão tornando todos os seus membros;
Ainda acaba por chegar com a língua à delicada greta,
Põe-se a brincar consigo própria, e não há-de ligar muito
aos homens.
Nota: remeto o leitor, mais uma vez, para Bukowski.
Não temas, doce donzela, a cobra que de ti se aproxima;
Já Eva a conhecia – pergunta ao padre, minha filha.
Não queres deitar-te nua a meu lado, doce amor;
Envergonhada, continuas a esconder-te de mim sob as
roupas.
Ouve, achas que desejo os teus vestidos? Ou desejo-te o
adorável corpo?
Repara, a vergonha é um vestido. Entre amantes, despe-se!
Nota: este epigrama, claramente de raiz cínica, é
fundamental. Dificilmente entendemos o romantismo alemão sem o que nele há de
grego original. Tem que ver, obviamente, com o que dizia no intróito. “A
vergonha é um vestido…” Já no Génesis se diz: «Tanto o homem como a mulher andavam
nus, sem sentirem nenhuma vergonha por isso.»
Todos, filha, me dizem que me enganas.
Ah, continua sempre a enganar-me assim!
Procurei muito tempo uma mulher; procurava, só encontrava
pegas.
Finalmente encontrei-te, minha pegazinha, e que mulher eu
encontrei!
Nota: pegas são pássaros, ou luvas, etc… Seria mais justo
ler aqui a palavra putas.
Fugiu de ti Himeneu? Ou fugiste-lhe tu? Que digo eu?
Himeneu! Delicioso, mas demasiado sério para mim!
Não se fala do que se passa no leito conjugal, e poeta é
bicho falador.
O amor livre deixa-nos livre a língua, o ânimo.
Não vos zangueis, mulheres, se admiramos as moças:
Vós desfrutais à noite do que à tarde as excita.
Nota: em alternativa, «vós desfrutais à noite do que à
tarde elas excitam».
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