segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

SUPLEMENTO


É o mais comum: as pessoas vestem-se, maquilham-se, algumas fazem plásticas, operam, disfarçam, escondem, usam adereços, transformam-se em adereços. A vida é na mais vasta extensão dos seus dias um exercício de dissimulação. Por detrás das máscaras, um corpo. A verdade há-de ser tudo junto, não a confundo com o lado menos nobre do exposto nem a esgoto no ordinário, no mero exibicionismo. Mas agrada-me quando encontro num escritor, sobretudo num génio, algo que o faz descer à terra. Precavido acerca do carácter abstracto das palavras, julgo ser perceptível esse momento em que o idealismo se transforma em comezinho, o lirismo curva-se ao prosaísmo e os versos fazem das tripas coração. Na obra aqui citada, há um conjunto de epigramas separados dos outros escritos por Goethe. São um Suplemento aos «Epigramas». Ora, como em matéria alimentar, também na poesia por vezes o suplemento faz a diferença:

Não me posso admirar de Cristo Nosso Senhor ter gostado
De viver com putas e pecadores. Pois se o mesmo se passa comigo!

Nota: por outras palavras, Bukowski disse o mesmo. Goethe & Bukowski: dois sócios, a mesma firma.


«Menina!», chamo eu a donzela. «Menina, o senhor não está em casa?»
Mas ela não me ouve; o chamamento não lhe chega aos ouvidos.
Outros jogos, mais doces, a ocupam.


«Vamos tomar café, meu forasteiro!» - com isso, o que ela quer é comer-me uma punheta.
Sempre detestei o café, amigos, e com razão.

Nota: a interpretação que o poeta faz do convite, provavelmente sugerido por uma daquelas putas aludidas no primeiro epigrama, é subjectiva. Seria importante perceber onde a tradução traiu o original. «Comer-me uma punheta» - o que é?


Não digo que não gosto de mancebos, mas prefiro as donzelas,
Porque se me farto dela como donzela, sempre dela me posso servir como mancebo.

Nota: Gregório de Matos escreveu algo muito parecido, talvez mais cruamente. Fica para depois.


Em vez de «rabo teso» dá-me outra palavra, oh, Priapo,
Que eu, alemão, como poeta sou digno de dó.
Em grego chamava-te «phallos», maravilhoso som para qualquer ouvido,
E também em latim «mêntula» é palavra digna.
«Mentula» vem de «mens», o rabo fica atrás,
E por trás é coisa que nunca me deu grande gozo.

Nota: impossível determinar se o gozo se afere de uma postura activa ou passiva. Pelo epigrama anterior, depreendemos que o poeta se refere a levar no e não a ir ao. Ainda assim, há algo neste epigrama que desafia qualquer hermenêutica: as pontes entre grego antigo, línguas alemã e portuguesa.

O que mais me apoquenta: Bettine vai ficando cada vez mais ágil,
Mais flexíveis se vão tornando todos os seus membros;
Ainda acaba por chegar com a língua à delicada greta,
Põe-se a brincar consigo própria, e não há-de ligar muito aos homens.

Nota: remeto o leitor, mais uma vez, para Bukowski.


Não temas, doce donzela, a cobra que de ti se aproxima;
Já Eva a conhecia – pergunta ao padre, minha filha.


Não queres deitar-te nua a meu lado, doce amor;
Envergonhada, continuas a esconder-te de mim sob as roupas.
Ouve, achas que desejo os teus vestidos? Ou desejo-te o adorável corpo?
Repara, a vergonha é um vestido. Entre amantes, despe-se!

Nota: este epigrama, claramente de raiz cínica, é fundamental. Dificilmente entendemos o romantismo alemão sem o que nele há de grego original. Tem que ver, obviamente, com o que dizia no intróito. “A vergonha é um vestido…” Já no Génesis se diz: «Tanto o homem como a mulher andavam nus, sem sentirem nenhuma vergonha por isso.»


Todos, filha, me dizem que me enganas.
Ah, continua sempre a enganar-me assim!


Procurei muito tempo uma mulher; procurava, só encontrava pegas.
Finalmente encontrei-te, minha pegazinha, e que mulher eu encontrei!

Nota: pegas são pássaros, ou luvas, etc… Seria mais justo ler aqui a palavra putas.


Fugiu de ti Himeneu? Ou fugiste-lhe tu? Que digo eu?
Himeneu! Delicioso, mas demasiado sério para mim!


Não se fala do que se passa no leito conjugal, e poeta é bicho falador.
O amor livre deixa-nos livre a língua, o ânimo.


Não vos zangueis, mulheres, se admiramos as moças:
Vós desfrutais à noite do que à tarde as excita.

Nota: em alternativa, «vós desfrutais à noite do que à tarde elas excitam».

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