segunda-feira, 17 de março de 2014

FÚRIAS


Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço

E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contratempo

1988

Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919 - m. 2004), in Ilhas (1989). «Logo no primeiro livro (...), Poesia, 1944, (...) encontramos um mundo poético depurado, em que as imagens se organizam segundo as suas próprias forças de coesão, em clássico equilíbrio ou balança (uma imagem-chave). Essa coesão é, de resto, a de uma identificação, como até então ainda se não sentira (apesar de tanto panteísmo professo desde Antero), do poeta com as coisas, ou melhor (e ela o diz), «com o milagre das coisas que eram minhas»: uma certa casa, um certo jardim, batidos dos ventos de um certo mar, a noite, a lua, a luminosidade e a brancura caiada de certo Algarve, imagens subsistentes por si, sem eu e não-eu. O segundo livro, Dia do Mar, 1947, (...) contém certas regressões ao «paganismo» invocativo de deuses e figuras clássicas (...); e a razão disso salta à vista dos livros seguintes (...): é que já «tombam as imagens»; «a raiz da paisagem foi cortada»; vem um sobressalto perturbar o jardim (...); onde há encontro, há já também despedida; e, por fim, «este é o tempo da selva mais obscura», em que o epíteto-chave ideal do «puro» contradança como sentimento-chave real do «nojo». (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa)

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