terça-feira, 11 de março de 2014

[IXION, OS TEUS DEDOS ESTÃO BRANCOS...]


Ixion, os teus dedos estão brancos de tanto se queimarem no contacto com as tâmaras da ciência. Outrora, todos te conheciam pelo modo como corrias e te mostravas o melhor em todas as provas físicas. Eras, então, o herói nunca vencido, o leão da arcádia... Mas hoje, Ixion, és o joguete da crueldade das crianças do cais. Sempre debruçado sobre um velho papiro, que ninguém sabe ao certo onde foi comprado, pareces-te com um flamingo doente. Os velhos marinheiros já se habituaram a ver o teu rosto nas tabernas, e nenhum deles adivinha que possas ser o Ixion, de quem, por vezes, na tua própria presença, ainda narram as estranhas aventuras... Ninguém, nem mesmo a tua querida e tão bela esposa, Iamel, pôde compreender os motivos do silêncio que sobre ti se fez, e em que te perdeste, ao regressares de Creta, de uma viagem de núpcias... Meses depois, a tua esposa, meio louca, abandonava-te, levando consigo o teu único filho - que, dizem, nunca mais quiseste ver. Dizem ainda que o que te perdeu foram certas palavras, já quase apagadas, que, por curiosidade, quiseste ler nas ruínas de alguns túmulos corrompidos... Outros associam o teu alheamento por tudo o que em teu redor se passa com o papiro que contigo sempre trazes, e que nunca te cansas de reler... Quem sabe?.. Eu próprio te segui durante noites e noites, por todas as ruas e grutas; escutei cada uma das tuas incompreensíveis palavras e, tenho que o confessar, do teu mistério nada fiquei a saber... Os mágicos, contudo, dizem que, um dia, escreverás o discurso da fúria selvagem que erra dentro de ti - e que, séculos mais tarde, outros homens darão grande crédito às tuas imagens e ideias... Quem sabe, Ixion?! Sim, quem o poderá saber?...

Fernando Guerreiro (n. 1950). Figura discreta do universo literário português, Fernando Guerreiro revelou desde a estreia em 1977 com Livros Iº e IIº, impressos e distribuídos à margem dos circuitos convencionais, uma forte inclinação ensaística, tomando como tema fundador o próprio acto da escrita na sua relação ambígua com o real. Nesses textos iniciais, impressos com profusas correcções e rasuras manuscritas, sem no entanto terem sido totalmente expurgados de erros ortográficos e dos automatismos inerentes à sua concepção, exploram-se formas diversas de texto, em verso e prosa, onde o gesto mais convincente é o de uma reflexão sobre o escrito em diálogo com o lido. Poesia multirreferencial, com especial atenção a autores do universo surrealista (em sentido lato), onde imagens grotescas se articulam com uma singular atenção ao quotidiano, entendido na sua relatividade fantasmagórica e monstruosa, e um erotismo por vezes visceral, outras vezes absolutamente delirante. Poderão aqui ter acesso a um texto que escrevi para a revista Sítio sobre o ciclo iniciado com o livro Teoria da Literatura (1997). 

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