terça-feira, 1 de abril de 2014

CATATAU


Em 1975, o poeta brasileiro Paulo Leminski (1944-1989) publicou, em edição de autor, o romance Catatau. Dedicada, mas não só, aos mestres do concretismo brasileiro — Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos —, esta obra, concebida durante praticamente dez anos, é, muito provavelmente, a maior prova de fundo da literatura de língua portuguesa. Referem-se, a título comparativo, as composições intrincadas de James Joyce, a experimentação verbal de um Guimarães Rosa, o legado absurdo de Beckett, mas é inútil comparar. Catatau é obra ímpar, singular, «ego-trip», como o próprio autor lhe chamou, onde as referências podem notar-se como temperos mas se fundem no caldo geral de uma festa linguística impossível de decifrar. Entregamo-nos à festa como quem penetra, pela primeira vez, território selvagem, sendo nisso o efeito que a obra provoca sobre o leitor paralelo ao efeito que o espaço geográfico da narrativa provoca sobre a sua principal personagem. Aparece-nos ela logo na primeira página, chamada de Renatus Cartesius, ou seja, o autor de Discurso do Método, obra fundadora do racionalismo europeu. Renatus Cartesius chega ao Brasil, de luneta na mão, amplificando a realidade e, com isso, a própria transcrição da mesma no texto. O uso frequente de maiúsculas reproduz esse efeito, em linha com as experiências concretistas que faziam da palavra impressa mais do que mera expressão de um significado. Renatus Cartesius chega e deslumbra-se de espanto, atónito com fauna e flora inconcebíveis, «bestas, feras entre flores», numa orgia de cores, cheiros, sons, movimentos, que a razão se esforça ingloriamente por acompanhar. Evoca um tal de Artyczewski, sente-lhe a falta, amigo de manhãs partilhadas a procurar entender o mundo. Espera por Artyczewski, sendo todo o romance a reprodução dessa espera. Escrito em bloco, sem um único parágrafo, reclama um dos significados da palavra escolhida para título: «bloco de composição muito condensado, sem parágrafos». Num vulgar dicionário de português, catatau é besta grande e magra, mulher velha e magra, pancada, castigo. Bate-nos forte esta pancada, como a Renatus Cartesius batem os fumos dos índios: «Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se populam da estranha fauna e flora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o estar interessante: a flora fagulha e a fauna floresce… Singulares excessos… In primis cogitationibus circa generationem animalium, de his omnibus non cogitavi. Na boca da espera, Articzewski demora como se o parisse, possesso desta erva de negros que me ministrou, — riamba, pemba, gingongó, chibaba, jererê, monofa, charula, ou pango, tabaqueação de toupinambaoults, gês e negros minas, segundo Marcgravf. Aspirar estes fumos de ervas, encher os peitos nos hálitos deste mato, a essência, a cabeça quieta, ofício de ofídio» (p. 17). Está dado o mote. A partir de aqui, acompanhamos Cartesius numa viagem alucinada onde a razão é assaltada pelo sonho, a realidade apreendida pelos sentidos em estado de choque, numa digressão onde se misturam línguas como se misturam imagens, onde o erro está em procurar compreender mais do que é possível sentir, onde a lógica se transforma na aporia, a percepção desviada e desviante das coisas contaminada pela efeito irracional dos fumos. Entre a confusão, surgem momentos vagos de organização mental. Mas logo o aforismo é vencido pelo trocadilho, pelo trava-línguas, pela palavra inventada, pelo desvario e pelo delírio. Uma teoria da monstruosidade do texto subjaz à obra. Todos os grandes temas metafísicos passam pela cabeça da personagem, passam com uma fugacidade estonteante, saltando de tema em tema, ziguezagueando como insectos na cabeça desgrenhada do filósofo. A páginas 116: «Fôssemos só os cagadores da merda mais clara neste âmbito sublunar, não haveria os sublimes seres como eu que maquinam o contrário! Mais carinho, trata-se do mundo, uma máquina cuja peça principal é minha cabeça! Entre um então e outro entrão, uma linha feita de infinitos pontos de exclamação, lá onde a bota de judas pisou na bosta do judeu errante, uma aleia de interrogações, e só depois o couro do tamborim, coxa de emboada, abarábebé!» Pode a cabeça do filósofo ser a peça principal da máquina mundo, nada o desmente. O que ela deixa de ser é o princípio da existência, a matriz do ser, pois essa surge aqui transformada num arquipélago indistinguível das águas que o rodeiam, fundido com o caos da realidade, cuja vontade é a dimensão mais lúdica da vida. Séria brincadeira de palavras, Catatau volta do avesso. No final, Artyschewsky (sic) chega: vem bêbado. Possui esta edição (Editora Iluminuras, 2010) alguns apêndices de valor: breves, mas luminosas, (des)coordenadas do autor e um conjunto de textos críticos reveladores da importância da obra no panorama da literatura brasileira. 

2 comentários:

soliplass disse...

Realmente é sempre um prazer ler sobre livros aqui. Seja sobre Leminski ou outro.

Abraços.

hmbf disse...

Obrigado, Soliplass, por mais este encontro.