terça-feira, 22 de abril de 2014

CORPO VISÍVEL


A esta hora entre os blocos de prédios enevoados a bela mancha diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina     extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentado seguido pelas aves que acordam a duzentos e mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
            não não 
                        quem sabe

Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada como a proa de um barco
bateira que me traz os dados e a roleta onde no branco ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
malmequer
bem-me-quer
ou muito     ou pouco
                                ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito

Dentro do grande túnel digo-te a vida
o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do outro lado da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto impertinente e desde logo minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana tende a reduzir o indivíduo receptor ao estado de serpente fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável

Eu digo que há tambores
mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira da porta - a tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da viagem -
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa avança sem deixar qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz     na orla do rio     a nuvem de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas - digo o grande baile do século na ilha

O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos perdidos
é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa dos meus dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo o fio da meada sem que é engraçado hajam batido à porta entrado ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar

Livres
digo Livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais espectaculares - aí a memória é fácil -
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela     tu que disseste:
                                   «vai haver uma grande guerra»
                                   «nenhum de nós eu sei escapará vivo»

vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze enterrada na areia
o écran que floresce
como tu     como eu     nos tubos que dissemos
fizemos
faremos     acordar
                                                  até quando?

Amor

                           amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cintilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu preto as suas hastes mudas

Começa a ouvir-se o canto da cigarra
sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses aqueles que nos foram queridos
na maré límpida que nos impele sabe o polvo dos mares até onde e se haverá regresso
em qualquer lado     a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda e sempre o teu rosto
como é fácil     como é belo
                           A Vida Inteira     Meu Amor
                                                                    SOMOS NÓS

O cigarro do anúncio adoeceu deveras já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire decidida importância
amanheceu     é óbvio     amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica     ou antes     na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões

Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se pareça

O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade carfológica
verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de invólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção espantosa masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual     admira-te     vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um - o crocodilo
e dois - o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia sobre a cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lhe à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à esquerda a sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem atinja bravo bravo bravo a imobilidade do sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos

Convenhamos meu amor convenhamos
em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo devido à miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que seja o último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
- A ensombração maligna de certas lágrimas quando a alegria é mais resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é quanto basta para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não o está na sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto uma flor especiosa
decor para a estrada pela esquerda alta da figura do Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu cinzento rosto impenetrável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até aos confins da terra

Contra ele meu amor a invenção do teu sexo
único arco de todas as cores dos triunfos humanos
Contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de água por todos os lados estéreis
Contra ele meu amor a sombra que fizemos
no aqueduto grande do meu peito              O MAR

Mário Cesariny (n. 1923 - m. 2006), in Corpo Visível (1950). «O surrealismo internacional teve um dos seus acasos mais felizes no facto de ter movido, no âmbito português, dois poetas que não eram meros prosélitos, António Maria Lisboa e Mário Cesariny. Empenhados na utilização duma sabedoria e de um enfrentamento do mundo que se cruzava com as teorias de Breton e com bastante do surrealismo ortodoxo, haveriam de lhe introduzir movimentações líricas específicas, bem como uma intenção discursiva, sobretudo em Cesariny, profundamente autónoma» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos). «Cesariny, que é pintor além de poeta, salienta-se como principal animador e figura representativa da mais típica fase do surrealismo lisboeta (...). Logo nas suas primeiras produções há um certo rasgo e uma explosiva dessacralização referida a circunstâncias reais portuguesas que sugerem a continuidade de Cesário, do Pessoa mais lisboeta e de um neo-realismo auto-ironizado. São muito sensíveis os processos de escola: sequências anafóricas ou paralelísticas, por vezes de inventário caótico, e animadas por jogos verbais; a absurdez provocativa de pseudodefinições, pseudo-etimologias ou pseudomicromitologias; diálogos desconexos e outras formas de sem-sentido; paródia; exercícios de automatismo frásico; tentativas de poesia autográfica ou caligramática; e, de vez em quando, alguns versos certeiros de veemência passional, de sarcasmo, de relance sobre situações corriqueiras mais ou menos grotescas, sobre ridículos quotidianos (alheios ou próprios) e sobre experiências íntimas» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). 

1 comentário:

marta disse...

Valham nos estes gajos, ó henrique