sexta-feira, 25 de abril de 2014

HIDRA DE LERNA DESCEU A AVENIDA

Fui ontem para Lisboa com a intenção de comemorar os 40 anos do 25 de Abril. É uma tradição que prezo mais do que a noite de Natal. Tenho as melhores memórias do dia, às cavalitas ou de mão dada com o meu pai a descer a Avenida da Liberdade. Dantes, ia a família toda. Este ano, fui sozinho. Ontem à noite, no Terreiro do Paço, fiquei espantado com o que vi. As pessoas estavam aperaltadas, tinham-se vestido para sair à noite, foram a um concerto. Havia filas para a cerveja. Entre as Portas de Santo Antão e o Terreiro pouco vi que não me fizesse sentir deslocado, parecia estar na fila para um musical do La Féria no Politeama. O fogo-de-artifício não iludiu o incómodo. Estou a ficar velho e resmungão, espero das massas o que não é sequer sensato esperar. As pessoas estavam ali para se divertirem, eu também. Mas temos conceitos divergentes de divertimento. E a sensibilização para causas políticas urgentes, se pode fazer do folclore sensacionalista meio para chegar às pessoas, não pode transformar-se num esvaziamento completo, por afastamento e indiferença, do ideal, do discurso, da mensagem, da importância de fazer o outro entender a vitalidade do conhecimento e do pensamento, a importância de não reduzirmos a nossa existência ao espectáculo. Dançar e rir todos os dias, como queria Nietzsche, mas fazê-lo no exercício do pensamento e da reflexão, não simplesmente distraindo a exigência com fantochada, pão e jogos. Hoje a coisa também não começou bem, com a comunicação social a dividir-se entre os capitães no Largo do Carmo e os trampões na Assembleia da República. Não fosse Jerónimo a acusar o desabafo reaccionário de Cavaco, e teria sido tudo bafiento na casa da democracia. Discursos de circunstância, alentejanos a cantar para o senhor Presidente, o senhor Presidente a tocar violino para os portugueses, Durão Barroso na sombra, uma corte de arrivistas insensíveis e gatunagem incólume. A maior parte daquela gente, representada em Cavaco como símbolo da desvergonha, não me merece respeito algum. São responsáveis objectivos pela degradação do país. E se não me espanta não terem vergonha na cara, o mesmo não poderei dizer não terem na cara vergonha os portugueses que os elegeram e todos os outros que os alimentam no poder por pouco mais fazerem do que não quererem saber. É caso de estudo. Como certamente será a síndrome de Pedro que atingiu Vasco Lourenço. Há anos que o ouvimos: vem aí a violência, vem aí a convulsão social, mas ainda ao fundo do horizonte não se vislumbram incêndios. Quando vier, ninguém acreditará. Na rotunda do Marquês, em círculos infindáveis, lá estavam os dignos representantes da convulsão por vir. Hidra de Lerna descendo a avenida, em saudável civismo, cantando, apregoando, dançando. Ali, Garcia Pereira. Acolá, Rui Tavares. Aqui, Carmelinda Pereira. Além, Fernando Rosas. E entre as bandeiras da JCP e da Intersindical, os jovens socialistas, os gays, as lésbicas, associações sem fim, colectividades, reivindicações, desejos, manifestações para todos os gostos de quem não goste de Cavaco, Passos, Portas e troika Lda. No Rossio, lembram-se os valores de Abril e arriscaram-se até soluções. A luta continua. Do outro lado da praça, junto ao Teatro Nacional D. Maria II, os actores eram outros. Gritava-se: «A esquerda unida jamais será vencida». Disse-me Marta Raquel ser a voz do operário. E quem assim gritava empunhava cartazes com os rostos das esquerdas. Entre Rosa Luxemburgo, Marx e Lenine, Che e Robespierre, os poetas, Sophia, Natália, até Lou Reed, muitos, tantos. Nenhum deles, que eu saiba, operário. Esqueceram-se, porém, do Buíça, que é de quem mais precisamos. Assim a diversidade da esquerda, Hidra de Lerna descendo a avenida, que nunca mais será vencida, pelo menos, nesta sua variedade. Como o espectáculo, o de variedades, que somos todos nós maravilhados com o fogo-de-artifício enquanto na Assembleia da República uma reformada aos 42 anos e um Presidente sem culpa escutam atentamente Grândola Vila Morena na voz de um reverente coro d'alentejanos. De volta, no Expresso, Al-Mu’Tamid arrancou-me a lágrima derradeira:

Solta a alegria! Que fique desatada!
Esquece a ânsia que rói o coração.
Tanta doença foi assim curada!
A vida é uma presa, vai-te a ela!
Pois é bem curta a sua duração.

E mesmo que tua vida acaso fosse
De mil anos plenos já composta
Mal se poderia dizer que fora longa.
Que seres triste não seja a tua aposta
Pois que o alaúde e fresco vinho
Te aguardam na beira do caminho.

Que os cuidados não sejam de ti donos
Se a taça for espada brilhante em tua mão.
Da sabedoria só colherás a turbação
Cravada no mais fundo do teu ser.
É que, de entre todos, o mais sábio
É aquele que não cuida de saber.

3 comentários:

Ivo disse...

Como boa pessoa que sou, passe a modéstia, fui à Luz ver o Slb-Juve. As 1ª e 2ªs estrofes do poema final contêm (por outras palavras obviamente) exatamente as mesmas ideias que um típico Alentejano me transmitiu junto à roulotte das bifanas. Nunca o tinha visto, nem ele a mim. E saiu-se com isto. E dou por mim a pensar que a vida é isto, pequenos nadas, e que realmente mais vale não saber, ou não querer saber. Acrescentou ele que não gosta de estar em Portugal (vive em Inglaterra) porque aqui é só filhos da puta. E não se referia aos políticos, era mesmo ao povo; o que me pareceu um pouco hipócrita, mas também ninguém é perfeito...

MJLF disse...

https://www.youtube.com/watch?v=KaSrvWgLaL8

marta disse...

Ai, ai, Henrique, o nosso país não é deste mundo!