terça-feira, 6 de maio de 2014

[Ando um pouco acima do chão]


Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio de incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe

Daniel Faria (n. 1971 - m. 1999), in Explicação das Árvores e de Outros Animais (1998). «A morte prematura do Autor, aos 28 anos, interrompeu o curso de uma poesia sobre cuja evolução é impossível especular, sendo certo que muito prometia ainda, face à extrema qualidade do que nos deixou. Trata-se de uma poesia "imensamente complexa" (Guerreiro, 2001) e a sua leitura é um processo continuamente em aberto e que levanta inúmeras dificuldades. (...) Um primeiro aspecto a salientar consiste na forte lógica interna dos livros do Autor, os quais não podem ser reduzidos a um mero acumulado de poemas alinhados ao sabor de quaisquer afinidades mais ou menos superficiais. (...) A obra de Daniel Faria, portanto, é como que uma estrutura arquitectónica, muito tensa, onde há um travejamento constituído por elementos modulares com função nuclear que se vão repetindo e desdobrando a partir do estabelecimento de associações que amplificam o seu sentido. (...) Encontramos na opulência das imagens e na rede metafórica, no tipo de construção poemática, com a presença de elementos que se vão repetindo ao longo dos textos, mas também no ritmo e por vezes na própria selecção lexical, afinidades com a poesia de Herberto Helder, por cuja obra Daniel Faria terá sentido uma profunda e não escondida admiração» (José Ricardo Nunes, in 9 Poetas Para o Século XXI).

3 comentários:

Maria Eu disse...

Para ler e reler. :)

Marina Tadeu disse...

Henrique muito obrigada. Não conhecia. Valente comoção.

hmbf disse...

Marina, vou tentar encontrar um texto que escrevi há anos sobre o DF para deixar aqui. Entretanto, chamo a atenção para esta maravilha:

http://antologiadoesquecimento.blogspot.pt/2006/11/homens-que-so-como-lugares-mal.html