sexta-feira, 2 de maio de 2014

ELEGIA (Saudade)


Hoje é um dia de perfeito verão. Já nele vejo,
com a dor de não querer ver, coisas de outono
quedas e melancolias, preparações do fim.
É por vezes em esplendor que as durações terminam
- crepúsculos, vindimas e bem-aventuranças.
Mas hoje ainda é julho e dia de verão
não queria ver a água tão limpa deste tanque
tocada pelas folhas que a vide já perdeu.
Não queria ver ainda, mas a alma mesmo cega
por distracções diurnas e brilhos mensageiros
não deixa de guardar em cofre o que não viu
para um momento exacto de silêncio e solidão.

Hoje é dia de julho mas são coisas de outubro
que já nele vaticinam melancolia e fim.
Não queria ver ainda este voo de andorinhas
caindo para sul - elas são chamadas a desaparecer.
Também este sossego no pátio das traseiras
ainda não o queria ver - aí já morrem pétalas
dos vasos das hortênsias. Frutos não colhidos
apodrecem pelo chão - ameixas de julho
lançadas a novembro. E tu, com a beleza
que o verão concede ao corpo: não queria ver ainda
essa expressão furtiva de quem se desengana
e entrega ao desamor. E no entanto é isso:
já cedo anoitece em províncias do teu rosto.

Hoje é dia de verão. Pudesse eu percebê-lo
sem os declínios e as forças sombreantes
antes nesse esplendor em que as durações culminam
- crepúsculos, vindimas e bem-aventuranças.
Oh, deixemos a tristeza desta lúcida saudade
e vamos para o sol e os jardins cheios de gente
louvemos as bebidas tão frescas e os risos
o rumor da aragem nas tílias e nas bétulas
e os cortinados leves arfando nas janelas.
As raparigas brilham e os rapazes são de sempre
no perfeito verão do seu dia de calor.
Que importa reparar que a hora já rodou
e o meu corpo lança uma sombra sobre o teu?

Carlos Poças Falcão (n. 1951), in A Nuvem (2000). «Há muito que a poesia de Carlos Poças Falcão procura uma difícil, e por vezes quase mística, simplicidade. Não há, claro, nada de pejorativo nesta asserção; simplicidade equivale aqui a uma extrema tensão verbal, a uma recusa frontal do acessório, de «truques» retóricos que são totalmente alheios ao autor de O Invisível Simples (título, aliás, bastante sintomático da poética e da dicção que caracterizam esta escrita)» (Manuel de Freitas, Expresso, 23 de Fevereiro de 2008). «(...) Estamos perante alguém que domina o léxico e a sintaxe dos seus sentimentos de um modo suficientemente vigoroso para que a vontade de dizer possa não se sobrepor à forma de dizer ou para que a organização formal se deixe tornar num exercício de retórica opaca e oca. (...) Construção e aparição: esta dualidade ritual enumera o mistério e as revelações em que os poemas se movem. E removem a densidade linguística e a densidade do mundo, de um mundo que é vocabular e geológico e astral e consumado em enigmas» (Joaquim Manuel Magalhães, in Rima Pobre). A imagem ao alto foi respigada aqui.

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