terça-feira, 17 de junho de 2014

PORTUGAL


Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante
D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electrochoques e está a recuperar
aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
como me pude eu apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga (n. 1957), in De Manhã Vamos Todos Acordar Com Uma Pérola No Cu (1981).  «É frequente associar a poesia de Sousa Braga a uma escrita que faz da ironia e da mordacidade valores absolutos, na esteira de um O'Neill porventura mais sarcástico (...). Fernando Pinto do Amaral fala de «avaliação cínica da sociedade actual» (cf. O Mosaico Fluído, 1991, p. 180). É uma convicção pacífica, face a uma obra capaz de cristalizar no mais extremado dos epigramas - «Só é poeta aquele que / é capaz de comer as próprias fezes» - com a mesma desenvoltura com que inscreve a legenda da reavaliação histórica (...). Esta capacidade de assim radiografar situações e aspectos característicos da sociedade contemporânea (sejam de carácter ecológico ou militar) é um dos traços mais salientes da sua escrita, embora certa propensão para a naïveté contribua para diluir a força das intenções» (Eduardo Pitta, in Colóquio/Letras, nº 125/126, Julho de 1992).

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