sexta-feira, 11 de julho de 2014

DOIS MIL E DOZE


A morte reclama-me a uma velocidade feroz.
Resisto-lhe há cinquenta e nove anos, mas ela não confirma
a dispensabilidade da rasura, veio-me aos braços com uma dor fortíssima
e bloqueou-me as artérias, como se nada mais houvesse
a render ao preito que a tudo devo. A ladrar-me às canelas,
fincou-se no coração, a pôr uma inviabilidade no meu peito
que não sei suportar mas que, como regra ancestral, mais não posso
do que receber, a fechar todas as portas e todas as janelas, mas abrindo-as
porque já chorei demais. Morte a escrever-me na cabeça
a volatilidade, a importunar-me por todos os lados onde me pedalo,
a fazer de mim um mistério da física quântica, um gato
de Schrödinger, vivo e simultaneamente morto, febril pela realidade,
sem um cometimento de várzeas a que me possa arrostar,
um monte de destrezas em que aplicar as letras com que a minha vida
se compôs. Quer a morte que eu deixe de escrever, que o latido do poema
se não ouça, que eu rebente as têmporas por não o encontrar, consumido
pelo esquecimento a que me vejo destinado, neste silêncio iníquo
que a idiotia vigente força, este ultraje que o crapuloso impõe, sanciona, justifica.
Nenhuma morte é legítima, penso há décadas que nascer para morrer
é um descalabro divino, mas não me larga o pescoço a morte, vou num fascínio
de antílopes a atravessar a savana, o leão vigia-me, creio até que me protege,
mas a víbora acossa-me com múltiplos estratagemas, esta sombra, esta falta de mar,
este rosário de ampolas e drageias, esta deslocação de ar sobre as coisas futuras
que presentificam a aflição, como se não estivesse já, algures, o meu testemunho
a dizer: este rapaz punha as unhas de fora quando o sangramento se entrosava,
mas sempre foi de uma bondade avassaladora, o mais que fez foi nunca serenar.
Tomo o quinhão, a estrada estende-se para lá do entendimento, nem eu mesmo sei
como desemaranhar os meus piores pesadelos, a morte põe ravinas sob os passos,
põe lâminas, põe traições, e o alimento subverte-se, entre o sólido e o líquido,
entre os fluxos do corpo, esses jactos que, azuis e verdes, emanam do enigma
para que nada seja irremissível, nem benéfico, nem necessário quando o rufo nocturno
se ouvir, e for dia pleno, e a morte, atrás da luz, se esconder para, de novo, me cercar.
Inspecciona a morte os meus joelhos, digo-lhe, vou ali e já venho, preciso de um café
para acordar, e lá está o seu trabalho a progredir, enchem-se de tristeza
os meus olhos, o horizonte de árvores que à minha frente se abre é um rodízio
de extermínio, as mãos tremem-me, escorre um fio de saliva pelo meu queixo,
sujam-se as unhas da higienização hospitalar, nem paciente sou, o soro flui pelo tubo
de plástico, a cama oscila, encosta a morte o seu flanco a este silêncio assombroso
onde tudo é letal e, como sempre, a morte extravasa as minhas prerrogativas,
deixa-me fora de mim, ainda inocente, alma inestimável em busca de consolo,
porventura manejadora de percalços há tempo suficiente para que eu possa presumir
que a salvação existe, que pode morrer a morte mas eu nunca morrerei, pese embora
o débil batimento cardíaco, esses cumes, esses abismos, essas derrogações, o aparato
desta gente imortal que, na enfermaria, toda a noite geme a meu lado,
aquele rosto com um xaile sobre os cabelos a abençoar-me porque lhe acautelo o sono,
igual à minha mãe quando a vi no esquife, igual à minha avó na praia de Miragaia
a dançar o mais exuberante feitiço que alguma vez conheci, igual a mim
no retrato em que mais não era do que um menino acanhado a ver as ondas a ampliar
o areal da praia de Francelos. Dessa imortalidade somos, não há avalanche
que o não desminta, a vida é coisa errante e nunca seremos um erro,
a vida é o que se contrapõe à omissão, o esquecimento, esse cimento infecto há-de
vencer-se pelo que for irrestrito em nós, um livro que há-de abrir-se à força
de faca, ou escrever-se à míngua de desalento, ou construir-se por um tenaz vaticínio,
ou amar-se como se amou uma mulher, ou um filho, ou uma praia que se perdeu.
Ei-la que volta, a morte. Ei-la que insiste. Ei-la que rememora
os mortos que já revimos na migração inultrapassável, ei-la que nos restringe,
a dilatar o campo de visão da nossa memória - estou a morrer naqueles mortos
da infância mas que vivos permanecem sob a minha memória, estou a morrer
com esta anciã a quem abriram o coração e não irá resistir senão quanto os anjos
permitirem, estou a morrer pela tua ausência, meu amor, nem saber se existes
e se, existindo, alguma coisa sabes de mim, ou sabes e não queres saber.
Estou a morrer há cinquenta e nove anos consecutivos e a boa notícia
é que ainda subsisto e, na estante, perfilo uns quantos volumes onde inscrevi
o meu nome, apesar de teres sido tu, morte, a redigi-los, a prescrever-mos,
a desgastar-me o coração em sucessivos abalos e deflagrações constantes.
Ah, deixa-me em paz. Deixa que, entre tumultos, agora a minha vida se inscreva
como um epílogo, mas que não haja epílogo, mas só um riso sobre todas as coisas,
um riso apoteótico sobre as sombras, um alvoroço como uma arte poética,
certo acinte singularmente objectivo para que anda fique por dizer na matemática
da vida, palavras deslumbradas que se embicaram umas nas outras como quem
acede ao prejuízo da morte, este rosto desamparado, este riso que ergo
ao pressentir-te, este açougue infinito.


Amadeu Baptista (n. 1953), in Açougue (2012). «Amadeu Baptista é um poeta caudaloso que não tem tido o devido eco pelo facto de ter vindo a lume muitas vezes em editoras de escassa divulgação, o que não permite ao leitor comum ajuizar sobre o fôlego e a qualidade das suas mil páginas publicadas, que já dobram as duas dezenas de livros. (...) A poesia de Amadeu Baptista vive da tensão entre aquilo que descreve e o que a linguagem exuma, na linhagem duma prática imemorial que procura sondar as ressonâncias e "correspondências" entre natureza e imaginação» (António Cabrita, Expresso, 2004). 

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