sexta-feira, 18 de julho de 2014

IN VANO VERITAS


Entre as formas de expressão literária concisas, o aforismo é das mais exigentes. Oferecer concisão ao pensamento pressupõe, anterior à sentença final, uma reflexão profunda que o imediatismo por vezes trai. Noutras ocasiões, não podemos sequer falar de sentença. Falamos de uma espécie de estado intermédio, porventura impossível de definir, entre as premissas e a conclusão de um raciocínio. Eivado de ironia, de dúvida, de cinismo ou de féerie, o aforismo denota uma inquietação do pensamento que, ao contrário do que possa parecer, não se compadece com certezas absolutas. Transporta-nos, antes, para um terreno problemático onde o que parece explícito traz implícitas diversas nuances conceptuais.
Portugal não tem uma clara tradição aforística, sendo possível encontrar obras de pendor aforístico, quase sempre de estilo diarístico, ou momentos esparsos onde o aforismo se mistura com as formas de expressão popular ou a poesia epigramática. Mas faltam-nos aforistas da dimensão de um Friedrich Nietzsche ou de um E. M. Cioran. Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949) foi um digno representante do aforismo cínico, mas caiu no esquecimento. Mais recentemente, alguns escritores têm sentido apetência pelo género (amiúde com fastidioso vício humorístico). Contudo, ninguém se dedicou entre nós ao aforismo como o búlgaro, radicado em Portugal desde a década de 1980, Dimíter Ánguelov (n. 1945).
A recolha  In Vano Veritas (Debout Sur L’Oeuf, Janeiro de 2014), trocadilho com a expressão latina In vino veritas, volta a colocar-nos na presença de um olhar tão inquieto quão desassombrado: «Passava pelo Ministério do Arquivamento quando exclamei instintivamente “In vano veritas!”. Felizmente ou não, ninguém me ouviu» (p. 25). Este aparente apontamento quotidiano é revelador de uma moral que não se nos impõe, colocando antes autor e leitor num mesmo estado de questionamento sobre a vanidade da existência. Por vezes interrogativos, outras vezes hipotéticos, os aforismos de Ánguelov nunca são expressamente conclusivos. Mesmo quando pressupõem definições, recorrendo ao verbo ser enquanto cópula entre sujeito e predicado, eles deixam em aberto a possibilidade da contradição. Exemplo superior desta prática é a distribuição por três páginas de vinte e cinco definições para o termo elegância.
Deste modo, «A elegância é: a mais perfeita relação entre a verdade e a aparência» ou «não procurar ver no fundo dos olhos do outro porque lá só reside aquilo que é universal de tudo o que vive – uma expressão tão directa que não suporta qualquer ideia de verdade, embora se tenha escrito que a verdade é o olho minúsculo de um ser há muito desaparecido» ou «uma graciosa nuvem que se mantém à devida distância da sua própria sombra» (pp. 7-8)… O que aqui fica claro é a superior relevância da observação face à veleidade determinística, não sendo tanto preocupação do autor fixar conceitos como parece ser explorá-los na sua extensão conotativa. Daí que, tomando como temas centrais os problemas da fé, das relações entre abstracto e concreto, pessimismo e optimismo, ou a questão da Natureza (com maiúscula), Dimíter Ánguelov revele, sobretudo, uma certa heterodoxia que se afasta da tentação para doutrinar.
Estes aforismos podem partir de possibilidades, podem definir pela negativa, podem sustentar-se em interrogações, mas raramente generalizam e universalizam a perspectiva proposta acerca do sujeito reflectido. Quando tal acontece, o mais que podemos esperar é isto: «Tudo aquilo que somos é um passado a dormitar» (p. 32). Como em todas as recolhas do género, há momentos onde a banalidade ameaça o conjunto: aqui uma escusada tentativa de se explicar, acolá um lugar-comum, além uma tirada humorística menos interessante. Mas no cômputo geral, a produção é de uma acutilância deveras estimulante:

Há uma única razão para ser optimista: a certeza de que mais tarde ou mais cedo deixaremos de o ser. (p. 16)
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Mostrar erudição é como aparecer de smoking emprestado – pode ficar-te bem mas toda a gente sabe que não é teu. (p. 17)
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Quando reparamos que as abomináveis traças nos esburacaram a roupa elas já são belas borboletas que nos alegram com o seu voo inocente. (p. 27)
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Se julgarmos pela maneira como Deus rege o Universo, aqui na Terra Ele não chegaria a director de jardim zoológico. (p. 29)

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