Entre as formas de expressão literária concisas, o aforismo
é das mais exigentes. Oferecer concisão ao pensamento pressupõe, anterior à
sentença final, uma reflexão profunda que o imediatismo por vezes trai. Noutras
ocasiões, não podemos sequer falar de sentença. Falamos de uma espécie de
estado intermédio, porventura impossível de definir, entre as premissas e a
conclusão de um raciocínio. Eivado de ironia, de dúvida, de cinismo ou de
féerie, o aforismo denota uma inquietação do pensamento que, ao contrário do
que possa parecer, não se compadece com certezas absolutas. Transporta-nos,
antes, para um terreno problemático onde o que parece explícito traz implícitas
diversas nuances conceptuais.
Portugal não tem uma clara tradição aforística, sendo
possível encontrar obras de pendor aforístico, quase sempre de estilo
diarístico, ou momentos esparsos onde o aforismo se mistura com as formas de
expressão popular ou a poesia epigramática. Mas faltam-nos aforistas da
dimensão de um Friedrich Nietzsche ou de um E. M. Cioran. Albino Forjaz de
Sampaio (1884-1949) foi um digno representante do aforismo cínico, mas caiu no
esquecimento. Mais recentemente, alguns escritores têm sentido apetência pelo
género (amiúde com fastidioso vício humorístico). Contudo, ninguém se dedicou
entre nós ao aforismo como o búlgaro, radicado em Portugal desde a década de
1980, Dimíter Ánguelov (n. 1945).
A recolha In Vano Veritas (Debout Sur L’Oeuf,
Janeiro de 2014), trocadilho com a expressão latina In vino veritas, volta
a colocar-nos na presença de um olhar tão inquieto quão desassombrado: «Passava
pelo Ministério do Arquivamento quando exclamei instintivamente “In vano
veritas!”. Felizmente ou não, ninguém me ouviu» (p. 25). Este aparente
apontamento quotidiano é revelador de uma moral que não se nos impõe, colocando
antes autor e leitor num mesmo estado de questionamento sobre a vanidade da
existência. Por vezes interrogativos, outras vezes hipotéticos, os aforismos de
Ánguelov nunca são expressamente conclusivos. Mesmo quando pressupõem
definições, recorrendo ao verbo ser enquanto cópula entre sujeito e predicado,
eles deixam em aberto a possibilidade da contradição. Exemplo superior desta
prática é a distribuição por três páginas de vinte e cinco definições para o
termo elegância.
Deste modo, «A elegância é: a mais perfeita relação
entre a verdade e a aparência» ou «não procurar ver no fundo dos
olhos do outro porque lá só reside aquilo que é universal de tudo o que vive –
uma expressão tão directa que não suporta qualquer ideia de verdade, embora se
tenha escrito que a verdade é o olho minúsculo de um ser há muito desaparecido» ou «uma
graciosa nuvem que se mantém à devida distância da sua própria sombra» (pp.
7-8)… O que aqui fica claro é a superior relevância da observação face à
veleidade determinística, não sendo tanto preocupação do autor fixar conceitos
como parece ser explorá-los na sua extensão conotativa. Daí que, tomando como
temas centrais os problemas da fé, das relações entre abstracto e concreto,
pessimismo e optimismo, ou a questão da Natureza (com maiúscula), Dimíter
Ánguelov revele, sobretudo, uma certa heterodoxia que se afasta da tentação
para doutrinar.
Estes aforismos podem partir de possibilidades, podem definir
pela negativa, podem sustentar-se em interrogações, mas raramente generalizam e
universalizam a perspectiva proposta acerca do sujeito reflectido. Quando tal
acontece, o mais que podemos esperar é isto: «Tudo aquilo que somos é um
passado a dormitar» (p. 32). Como em todas as recolhas do género, há
momentos onde a banalidade ameaça o conjunto: aqui uma escusada tentativa de se
explicar, acolá um lugar-comum, além uma tirada humorística menos interessante.
Mas no cômputo geral, a produção é de uma acutilância deveras estimulante:
Há uma única razão para ser optimista: a certeza de que mais
tarde ou mais cedo deixaremos de o ser. (p. 16)
*
Mostrar erudição é como aparecer de smoking emprestado
– pode ficar-te bem mas toda a gente sabe que não é teu. (p. 17)
*
Quando reparamos que as abomináveis traças nos esburacaram a
roupa elas já são belas borboletas que nos alegram com o seu voo inocente. (p.
27)
*
Se julgarmos pela maneira como Deus rege o Universo, aqui na
Terra Ele não chegaria a director de jardim zoológico. (p. 29)
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