sexta-feira, 25 de julho de 2014

L'OUBLI


de tudo o que esqueci me inquieta
uma memória outra. Feita de trapos, de búzios, de folhas
quadriculadas onde só restam junto
à curva azul dos olhos, as marcas
da batalha naval.
De madrugada é sobretudo a névoa que me falta,
o pêlo das mulheres, e as palavras
escritas devagar num livro redondo.
Protasis, apodosis. Anotado nas margens
de um antigo aristóteles: distinguir
energia de kinesis.
Distinguir
Gemeinschaft, Gesellschaft.
A energia em spinoza: conatus in suo esse
perseverandi.
Distinguir, sublinhar, suplicar.
Depois as rodas giram, as árvores
fazem pequenos ruídos ao crescer.
E esqueço-me da idade, a minha, encostado
ao balcão do bar em blue-jeans e camisola verde, 
o olhar preocupado das camas vazias e
das estrelas que morrem, se apagam, inexoravelmente.
Como um pequeno daimon de lutero, List,
Tucke, Schalkheit, será possível que
alegria de sempre sejam
hábitos, a experiência: associações de ideias,
o disse reynolds.
Porque te sentas porventura a meu lado
de mãos inclinadas. The ENGLISH are,
perhaps, greater philosophers, BUT
the FRENCH are the only people who
(por vezes, os nomes. A origem
e direcção das ruas, o modo
de levantar os dedos na carne,
e distinguir a voz ao fundo dos rios,
ou pela pele, os gestos, a maneira
de espalhar o silêncio, as mãos
dobradas sobre o peito.

esquecer é depois uma tesoura de água,
hesitante em frente à estante
dos livros pornográficos, folheando
slim and slanky, sem outra já lembrança
dos corpos na saliva;
asphodel, that greeny flower,
os olhos debruçam-se no aparelho das chamas
e nunca são os mesmos) error,
error, non est Geom,
ao meiodia são horas de ler cartas
com sabor a resina, tacteio
devagar os cavalos empinados ao canto,
decifrar uma língua pendurada dos fios,
ser português: e esqueço-me das mãos, o ruído
das aves ao crescer repete-se no crânio,
one falls in love and desires
mastery
                old Zeus ——— young Augustus
adormecido em lianas de cobre e de heroína:
«esquecer-me de tudo, memória
completa», (é talvez madrugada em Lisboa)
das regras do silêncio, da vulgar
tabuada decorada nos dedos,
o quadrado perfeito: harmonia: as chaves,
as horas, Klein's icosahedron.
Distinguir, uma face estrangeira suspensa
dos cabelos pela pedra inocente,
tempestades de vidro em barcos internos,
o fumo agreste sobre
o granito queimado das esquinas.
(agarro-me aos teus pulsos agarrado
ao horizonte. Ahab, meu amigo.
ils ont dit oui/à la pourriture)

: concelhos de emigração forte: os que
nos dois períodos apresentam taxas iguais
ou superiores a dez por cento
e que são trinta:
                       somente
a luz não é suspeita
feita de trapos, búzios, de seixos
guardados numa caixa de cartão azul,
e de chaves molhadas no bolso dos dedos
arrancados à pressa, a asma de verão
no sud-express, clarté de l'air,
soleil qui ose, e morre no silêncio
das máquinas agudas na garganta,
terias tu também esquecido a erva
ao canto dos quartos, O love
who places all where each is, as they are, for
                 every moment,
yield
           to this man
que a impossível distância / cicatrize
feita de trapos, búzios, de jornais
circulando nas veias, de estações viajando
ao encontro dos lentíssimos comboios, aonde
mercenários do congo discutem massacres,
de dicionário aos ombros como uma bomba fria.
esqueço, o som das asas
multiplica-se, alarga-se, explode sobre as folhas
quadriculadas da manhã, se encostado ao balcão
me aproximo sem gestos, e arde
no céu das mãos uma madeira antiga (je voudrais
m'approcher de toi et que tu m'aimes)
e me espanta nas costas um número tatuado
como uma flor-de-lis desenhada na água.
Kadmos, Laios. À margem: left-sided?, uma
frase de Séneca: per alta vade spatia
sublimi aethere: testare nullos esse, qua veheris, deos.
Margem: mission control / said early this morning
the oxygen supply will hold up. A voz
perdendo-se nas rugas, intervalos,
ao dormir devagar sonho vozes sem boca,
os braço inclinados: porque te sentas
porventura a meu lado, não vês
as unhas presas ao mar, a névoa
nas axilas, quanto me esqueço, lembro, quanto
me é madrugadanoite em volta de lisboa,
a ardósia decepada e uma garganta morta.
Asma, asthme, asthma, são cabelos nascidos dentro da boca,
a crescer para dentro das paredes,
os deuses invisíveis na distância, esqueço,
distinguir, conhecer: as palavras
escritas sem cessar no envelope redondo,
                        old Zeus ——— young Augustus
quanto as chaves nos duram sobre os olhos.

asphodel
             has no odor
                              save to the imagination,
tem o sabor das pedras contra o vidro,
esquecer, o ruído das rodas no ventre dos navios,
o pêlo das mulheres no intervalo dos ossos.
                                                     O love,
pousar as mãos na forma da madeira, abrir
uma caixa submersa, ver
palavras em fumo subindo na tarde,
estas, e um resto de saliva cai-nos dos olhos
sobre o cartão queimado, farrapos, búzios,
um mapa de lisboa com cruzes a lápis.
                                              O love,
este fumo nas ceias sem cheiro nem voz,
escrevendo-se longe num céu de mãos abertas
fuzilado de deus, porque me sento
ao balcão em blue-jeans e camisola azul
e anoitece, anoitece sempre, anoitece na cama
onde brilha nas costas um número passado,
anoitece nas folhas, nos barcos inclinados para a terra,
na ardósia onde se apaga devagar um nome,
anoitece nos olhos, ó somente dizer
amor, amor, e fazer-me sentido quanto esqueço
sem peso
             outro que a boca,
um hálito estrangeiro sobre as pedras:

désirer la maîrise c'est
en être loin, trop loin: esquecer é depois
esta inquieta maneira que nos fica
de debruçar as ruas, de acender
as luzes de repente e respirar 
a tranquilidade do terror adiado,
                          ó somente não ter
mais nada que lembrar, mais palavras a arder
dentro do crânio quando as folhas crescem,
acordar em Rapallo ou Santa Barbara
dentro de um corpo, colado, coincidente,
erguer o totem a meio do pátio com lixo e paixão
que nos dê sombra e a mansidão dos pulsos,
acabar, desistir, fechar o ouvido ao arrastar das unhas
nas paredes, não falar outra língua
que a da madeira ardida no cimo da água,
rios
    paralelos ao mar: ó somente
dizer, dizer, bater as mãos e os frutos contra a terra,
escavar a terra, escavar os rios dentro da terra,
escavar as mãos e o frutos dentro da terra,
adiar a memória que nos fica inquieta
a crescer nos farrapos, nos búzios; no pêlo das mulheres
deitadas nos pulsos, nas veias de cartão com cruzes desenhadas
                                                                   conatus
in suo esse perseverandi
but one falls in love and desires / mastery
                               ó somente dizer

«yield
        to this man
                        that the impossible distance
be healed»

(escrito em 1960, uma tarde tão lenta, as
asas cresciam nas costas dos muros,
uma mala de esquinas inclinada na boca: «adeus,
amigo antigo, amigo velho,
vou partir e não amo ninguém»; quanto
debruçado na chuva me custara o silêncio,
quanto as palavras, em notas
sobrepostas: «assim
sempre a distância nos cura de si mesma»,
«distância é estar aqui hoje e agora»,
ou mais tarde, verão de 1964, em portugal
quase perdido no rumor das chaves: «être ici
est magnífique, mas a luz apodrece
tão depressa!»; e à entrada de um novo
dicionário: «é impossível escrever português
fora de portugal. é impossível
escrever». Buscando
uma língua, um sinal, bêbedo de esperma
em siracusa imaginária, atravessando o golfo
em direcção ao cairo, ou «gravemente»
entre duas colinas, no centro da galiza, 
notando: «é preciso ler rosalía para nos
entender», «o a. diz, e é talvez verdade,
que cortámos os pulsos na fronteira, sem dar conta».
Buscando uma margem, um céu onde pousar
as mãos, uma cinza que baste
às marcas no peito, uma vertente
nua de cicatrizes: de genebra, a um amigo,
novembro de 67: «não se respira aqui,
come-se ar, e sabe a desânimo».
De boston, em resposta a poemas 
alheios: «estou inocente, é difícil».
Idem, março de 70, a uma crítica porventura
amável: «eu falod e raízes sem paixão nem medo.
Sempre me repugnou a ideia de salvar-me
ou de ser salvo: Xto & etecétera».)

de tudo quanto esqueço,
                                     vê,
me dói mais que a memória uma mancha
nas palmas das mãos. Porque me sento
ao balcão do bar com farrapos nos olhos
e desejo uma voz habitada por dentro,
la maîtrise, mastery.
Uma flor que não pense, sem perfume que entorne
a boca da memória.
Uma rosa que queime sem cinzas aos ombros.
Espalhar o silêncio, as armas
dobradas sobre o peito,
e dizer da alegria inclinada nos rios,
oculta, oculta ainda,
                              listen:
asphodel has no odor
save to the imagination
but it too
            celebrates the light,
ouve, por detrás das palavras uma voz acordada
escreve a luz,
celebra a luz,
nascer aqui être ici
é o espaço visível na ranhura dos lábios,
se as mãos se estendem na madeira ardida
o vento golpeia o intervalo dos dedos,
ouve, o ruído dos ossos ao crescer sobre a terra,
a eternidade possível a estender-se na água,
transitória, mexendo devagar
as pálpebras, ouve, movendo-se
através das paredes uma cicatriz quente,
desenhando, apagando, as marcas na quadrícula
regular do cimento,
ouve, esquecendo, esquecido, batendo de repente nos ombros
sem perfume outro
                          que a imaginação,
como aguarda, como foge, como se rasga
no côncavo da pele, como
espreita nos muros, nos trapos, nos búzios,
no pêlo das mulheres adormecidas,
no rumor das camas
vazias, na saliva
mais lenta, ouve, como cresce
nas árvores, nas asas, na terra
paralela aos pulsos, como se aproxima,
como suplica, como se perde,
ouve, como celebra
                             a luz,
(nous n'avons rien à voir / avec leur pourriture)
ouve, os braços invisíveis na distância,
a voz, o ruído
das unhas na parede,
o aparelho das chamas, como
celebram a luz,
                     suspensa
dos búzios, dos seixos guardados
numa caixa marinha, ouve,
como esqueço, como escrevo, aos galopes, nas veias, nos olhos,
porque me sento ao balcão do silêncio
a teu lado, ouve como esqueço,
porque celebro a luz e te encontro e te abraço
i have the words.

António Franco Alexandre (n. 1944), in Sem Palavras nem Coisas (1974). «Se excluirmos Distância (1969), livro de estreia com numerosas rugosidades de escrita e dívidas muito nítidas a uma retórica supostamente anti-discursiva dominante nos anos 60 portugueses, a marca da obra de António Franco Alexandre na nossa mais recente poesia está ligada aos finais do ano de 1974. (...) António Franco Alexandre propõe, portanto, e como quase todos os poetas portugueses mais significativos, virtualidades alteradoras importantes em português, na precisa medida em que procede a essa relativa absorção processual de outras tradições internacionais e as distribui perante nós, integradas numa perspectiva emocional própria. (...) O principal contributo da poesia de António Franco Alexandre não reside tanto na técnica de que nos torna participantes, mas na qualidade de réquiem urbano que nos faz ouvir, na mágoa dos corpos perdidos que nos faz partilhar, no desalento com que nos faz contemplar os objectos de um erotismo fatigado e infeliz. Essas , contudo, não deixam de ser importantes. Como a ampla construção de um poema através de sucessivas variações de um tema único ou de temas próximos, uma espécie de técnica pedida emprestada à sextina ou ao vilanelle, mas onde cada estrofe se visse explodida até um núcleo mais vasto de versos, constituindo uma das divisões em que se encontra articulado o poema» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos).

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