quarta-feira, 23 de julho de 2014

(Os pontos ordinais)


Quando se fazem água os olhos
e o sol nasce outra vez por sobre a praia,
abre-se e escorre o mundo como o fruto
comido sob a sombra.
                                 Ao norte,
abeiram-se ventos surdos, leras cruzes
caminham por si sós com pés de ferro,
apodrecem areias pela noite.
Não sei se há florestas verdadeiras.
São folhas de comento (ó Nibelungos!),
são armários de corda cheios de bicos
dentro, e uivos. São pálidas senhoras
nos seus colos sentadas desde sempre
com unhas fortes e o pequeno defeito
dos dentes canibais: ao norte.
                                             Mas
quando se fazem água os olhos
e se estendem os braços para toda a parte,
não se procura nada, o ar
tem o azoto próprio e colocado parco
na correcta função: o mundo
não tem rosas dos ventos
além de rosas, ventos, e a pequena harmonia
de ser um centro inteiro.
                                   Ao sul
há luzes negativas, e as tais areias podres
são bolachas desfeitas contra a pele.
Se tudo é rarefeito, tudo é cheio
de males devagarinho e delicados, poços
amargurados, já verticais e fixos
antes de se pensarem, imensidades
crassas onde a lonjura apenas
é fumo aguado, olvido,
assombração caiada. E garras
sob os panos: sul.
                          Mas
quando se fazem água os olhos,
ao se cavar na terra temos neve
tão quente como nós, e larga colcha
de lumes inauditos cobre os dedos
mais sagazes que o medo, mais
fortes do que a nuvem. Tempo
alagado e limpo sobre as ervas
minúsculas, tão finas, que o próprio
vento as zune com cuidado, embora
se nos baste, e a lava cresça
em festa e madrugada.
                                 A leste,
os úmeros abatem-se, os goivos secam
como no peito vai enferrujando
a espada. À noite os calendários
acendem-se com brilhos, entumescem
de gritos adestrados e de polpa
com repressões geladas. É defectivo
o verbo, nem há outros, as pessoas
são todas a terceira. Separam
a morte os tendões da memória,
a carne cospe-se para um balde
vazio, os ovos tremem dentro
como lágrimas presas: a leste.
                                             Mas
quando se fazem água os olhos
e as horas refluem ao coração mais largo,
saltam da terra os poços,
amadurecem uvas junto aos dedos
e há tigelas de orvalho preparadas
para as manhãs no peito. Em pé
há mundo que se veja até ao rio,
onde os choupos são novos e conhecem
os corpos e os peixes. Sim, há noites
para falar mais baixo, porque tudo
se chega ao pé de tudo, e o limiar
da boca é toda a voz.
                                A oeste
o sono é baço, e morde o pano
que as partes cobre onde é veloz
a cobra. Os seres abocam
a névoa do silêncio, engordam
muito em baixo, junto dos calcanhares,
e cardam a cal e o sebo
de um roedor gigante sentado sobre as patas.
As janelas apartam, os nomes secos
ateiam as fogueiras prolongadas
um pouco para a direita, para o norte.
As opas são opacas e azedas.
Não há já chuva a oeste.
                                    Mas
quando se fazem água, os olhos
abrigam luz tão leve qual um vento
que regressasse ao ninho pela tarde.
As tômbolas de folhas nos concedem
um lar sem dimensão onde as palavras
são dadas e mais longas. Onde é preciso
nada, e as luvas breves. Onde
os brilhos são mar ao pé da mão
e a vida achada entre uma pedra
e outra. Saber é não saber
quando um repente avança
por sobre a pele do verbo
e a verdade se instala, e acordada
é mesa e cama e copo,
roupa lavada para amanhecer
ou pequeno assobio colocado
entre a boca e a boca. Que tojo
nos pertence, tudo terra?
Não passa o que se passa:
e é fazerem-se água os olhos,
no jeito em salto e branco
em que as cores apetecem
outras cores a seu lado,
que permite que exista sobre o ramo,
junto do peito ou perto pelo ar,
o real definido além dos mapas,
a mão no espaço,
                          um corpo,
                                         a liberdade,
um pássaro no mundo.


Pedro Tamen (n. 1934), in Escrito de Memória (1973). «(...) a sua poesia entrega-se à desmontagem do prosaísmo discursivo da linearidade declarativa, da ausência de perturbação sintáctica que caracterizavam a dominante poesia interventiva, de intenção social expressa, ou aquela de floração psicológica intimista e ligada aos ritmos tradicionais que a moribunda tradição presencista ainda aclamava. Os suportes principais dessa renovação discursiva em Pedro Tamen são o regresso a uma atenção ao verso enquanto unidade principal do discurso do poema, o recurso a processos retóricos ampliadores do sentido e distorsores da linearidade frásica ou rítmica (como o encavalgamento, a aliteração, a assonância, a motivação vocabular), a recuperação da prática conceptual que traz para o centro da preocupação poética uma certa tradição barroca sem vocação excessivamente maneirista. (...) Sem qualquer espécie de acentuação da recusa da pessoalidade, que conduziu o nosso século a alguns dos mais hiper-pessoais discursos poéticos por via da impessoalidade rebuscada, Pedro Tamen constrói uma neutralização da confessionalidade e do excesso subjectivista por uma insistência no facto de as palavras serem mais suportes conceptuais do que impulsos designativos de intimismos» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos). 

Sem comentários: