Vem para sob a telha vã do meu telhado.
Vem, mas se puderes,
Não como os anjos mensageiros que descem aos vales
Num rastro iluminado,
Mas vinda humanamente e só, dentre as mulheres,
Sujeita aos impiedosos golpes do granizo
E à chuva dos males
E ao transe de gerar se for preciso.
Serve-me se vires
Que servindo-me serves o teu coração
Angustiado.
Vela-me sempre
Se velando-me velas o teu coração
Alarmado.
Cobre o meu peito
Se cobrindo-me cobres o teu coração
Desolado.
Ah, vem! Se tu não trazes a missão de quem
Nasceu piedoso e santo.
Porque, em verdade, se tu queres distrair a dor
Ou lá que seja que peleja em mim,
Vai, noiva de mundos, vai fria, buscar
Saber maior.
Vai serenamente,
Serenamente mas inquieta vai, ó vesperal
De perenal sabedoria.
Vai silente, discente, não pia
E dilui-te, evolui-te na cósmica amplidão
Como traidora ou ladra, ou como espia.
Vai!
Quando souberes traçar linhas sem fim
(Os contorcidos e medonhos traços
Dos passos humanos)
Vem desenhar comigo o sofrimento
Nos últimos poemas consentidos.
Quando tarde meu sono tardar
E tu saibas cantar a harmonia
Das coisas transcendentes que os meninos decoram mamando,
Vem, ah, vem cantar-me a loucura d'Aquele
Que se esconde e me prende
Chamando.
E quando livre e falsa e fria,
Alcançares fazer justiça plena
Sem que os homens te queimem por vil sacrilégio
De fazê-la...
Tala, tala,
Tala os siderais espaços do Senhor.
Guia os teus passos para a cova dos ladrões celestes
E prende o ladrão-mor
Que roubou minha seara de estrelas!
Entretanto o meu corpo há-de ruir.
E embora a ideia custe,
Inútil serás
Que deixarás nele cumprir-se a lei de Proust.
Políbio Gomes dos Santos (n. 1911 - m. 1939), in Voz Que Escuta (1944). «Políbio Gomes dos Santos relacionou-se com o grupo que viria a constituir o Novo Cancioneiro. A sua poesia, porém, apesar de vigorosa e prometedora, não chegou a libertar-se, quer na forma, quer na intenção, dos moldes «presencistas» então ainda muito prestigiosos, que no entanto transforma para um lirismo impessoal e mais directo» (Jorge de Sena, in Líricas Portuguesas). «Traz à sátira social uma arte poética de estranha qualidade, um temperamento rico e doloridamente original, capaz de unir certos motivos num mesmo fio: o do sangue de muitas vidas corrente em direcção à morte e o da bacia hidrográfica a escoar-se para o mar; o do próprio corpo doente e o da pobre cidade burguesa febril e visionariamente radiografada, numa impressionante identificação da doença fisiológica com a social que transfigura o narcisismo de António Nobre, ponto de partida da sua estética» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa).
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