quarta-feira, 20 de agosto de 2014

PROJECÇÃO



Entro no largo da Câmara Municipal pela Rua de São Tiago. Avisto-o de costas, estático, como se fosse uma estátua ali colocada. Os longos cabelos brancos caem sobre as costas, manto que o protege das intempéries. Certifico-me de que se trata de quem penso. Dou uma volta ao largo, sento-me do lado oposto ao que se encontra e observo-o. Intento a palavra certa, não vá cortar a boca no arame farpado. Ele não pestaneja, está recostado no banco do largo remodelado. A coluna curvada. Uma barba farta que se mistura com a cabeleira estende-se sobre o peito. Descobrimos-lhe o olhar só quando nos aproximamos. De quando em vez, esboça um cumprimento. Acena com a cabeça, levanta uma mão. Parece calmo. Mas tem nos olhos a cor grisalha dos cabelos, uma paz combalida. Há pouco, as gaivotas sobrevoavam o aterro sanitário em busca de alimento.



Aproximo-me, meto conversa. A poesia gera pontes, mas são todas de ferro velho enferrujado. A palavra certa é a mais simples. O homem dos cabelos brancos mantém o discurso que já lhe ouvira. Uma coerência desarmante. Pressinto-lhe as mazelas de um acidente vascular recente. Explica-me o que os médicos não admitem, que o achaque afinal foi uma projecção. Quando se preparava para descansar da missão que o trouxe à cidade, aconteceu-lhe aquilo. Agora não pode descansar, não pode voltar a ser quem era. Ninguém volta, penso. Mas este homem, tão certo e convencido de ser quem é, entala-me entre os benefícios da loucura e os estragos da normalidade. Não sei se chame liberdade ao seu abandono, não tem o sentido de abnegação da esfinge hindu.  Talvez o seu mundo cresça do avesso, jogo de espelhos onde as horas são preenchidas tentando perceber o que há de real no reflexo. 
Évora, Julho, 2014.

2 comentários:

MJLF disse...

GRANDE ENCONTRO! saúde e Bjs para toda a tribo

Ana disse...

O sr. Luís.