terça-feira, 19 de agosto de 2014

UBI SUNT



A opção por uma expressão latina para título de um livro oferece ao objecto uma certa solenidade. Não é caso único no conjunto da obra de Manuel de Freitas (n. 1972), desta feita devidamente inventariada ao longo de cinco páginas posteriores ao índice. Perturbadora, porém, esta opção no menos solene dos poetas portugueses contemporâneos, assim como impressionante a produtividade de um autor estreado apenas há catorze anos mas que conta já com cerca de quatro dezenas de títulos publicados em nome individual. Ubi Sunt (Averno, Junho de 2014) é aquilo que anuncia: um livro evocativo de pessoas e de lugares ausentes. Sendo a morte, na sua íntima relação com a pesada mecânica do tempo, um tema recorrente nesta obra, ela aparece agora directamente associada à perda. O volume é dedicado à memória de Maria de Lourdes de Almeida Pereira de Freitas, embora diversos dos textos que preenchem as três partes (Hic, Et Nunc, Et Semper) sejam objecto de dedicatórias a personalidades facilmente identificáveis (geralmente escritores que se presumem do círculo de amizades do autor). Esta vertente intimista é fortalecida pela omnipresença da companheira de Manuel de Freitas ao longo dos três conjuntos, convocada múltiplas vezes a partir de referências mais ou menos directas. Trata-se de um registo pessoalíssimo que, curiosamente, parece pretender anunciar um certo distanciamento. Desde sempre encontramos também nesta poesia evocações da infância, dos lugares onde a mesma se concretizou, assim como daqueles por onde se foi perdendo. A poesia de Manuel de Freitas apela a uma viagem no tempo, com recuos onde a memória vai encontrar os elementos que explicam a tristeza, a melancolia e a nostalgia enquanto sentimentos fundadores de uma poética marcada pela saudade nesse sentido muito próprio que a poesia portuguesa lhe confere (mas que nada tem que ver com cultos messiânicos ou bandeiras identitárias). «O maior andarilho e boémio / da minha aldeia» (p. 12), «um grande bêbedo / e um fumador diligente» (p. 13) não são meros recursos literários, conectam o poema a lugares e tempos povoados por figuras de uma memória que aqui se constitui enquanto imaginário possível da experiência de vida sobre a qual o texto se constrói. Os poemas em prosa, em maior número, desenvolvem este processo com especial acidez, chamando a atenção para sítios onde o poeta conheceu os melhores e os piores espíritos da sua geração, ou se atira aos «evangelistas da eternidade» (p. 17) depois de uma consulta médica, ou lamenta ter-se esquecido dos nomes de praticamente todos os professores de Português. A constatação da decadência propulsionada pela passagem do tempo — «o desgaste do tempo» (p. 41) — resulta numa nostalgia desapiedada, sem concessões líricas nem encantamentos fugazes. O ambiente cultural e social do país encontram nesta poesia um retrato desencantado, centrado, é certo, na expressão de um Eu que se afasta do que agride mas admite aproximar-se pela linha afectiva: «a amizade é uma ponte incalculável» (p. 38). Sem pretender parecer nostálgico ou ser confessional, Manuel de Freitas acaba por ser ambas as coisas: «Com ou sem talento, fui ou sou tudo o que vagamente desejei: poeta, crítico, editor, barman, livreiro e tradutor. De um modo quase sempre bastante heterodoxo, é certo. E tive amigos, conheci de perto o amor. Também houve falsos amigos, traições, os piores enganos» (p. 46). A literalidade do discurso, que por vezes insinua uma enervante autocomiseração, agita a leitura. Não é usual, mas, por isso mesmo, recentra na autenticidade da voz a sua maior força. Dúvidas sobre a utilidade da poesia («aproximar pessoas» e «diluir falsas fronteiras» na p. 35, «serve para nos sentirmos um pouco mais tristes, solitários e deslocados» na p. 54), o desconsolo das dores intoleráveis (o tédio dos dias, a perda…), indícios de uma saturação aparentemente fatal, são instantes que denunciam uma poética feita de despedidas, uma poética exclusivamente ligada à existência (que é, para todos os efeitos, uma despedida constante). O poema que, quanto a mim, melhor sintetiza tudo isto é este:



FIM DE CASO

Foi num dos muitos táxis que me conduziram à ausência da minha mãe, cada vez mais óbvia, que ouvi «Fim de Caso». O nome de Dolores Duran era-me totalmente desconhecido, mas logo fiquei preso àquela gravidade simples, em sentido musical. Nem só de Bach e de Billie se pode viver, embora por vezes apeteça. Cheguei a casa e apenas me interessava saber que gravações havia dessa mulher que viveu 29 anos e decidiu dormir até morrer. Compreendo-a muito bem.

*

A quase integral chegou no dia seguinte à cremação da minha mãe (obrigado, Inês). Dolores impressiona, sobretudo, pela sua convincente mudança de persona, o tom canalha nas canções francesas ou nos temas nordestinos, a sensualidade dos boleros, a inesquecível versão de «My Funny Valentine» (que Ella Fitzgerald terá considerado a melhor que já ouvira). E devemos-lhe, além de «Fim de Caso», composições como «A Noite do Meu Bem». «Quero a alegria de um barco voltando» é dos melhores versos que conheço. Corrijam-me, se estiver errado.


Manuel de Freitas, in Ubi Sunt, Averno, Junho de 2014, p. 60.

3 comentários:

Jorge Melícias disse...

Corrigiria se valesse a pena. Mas não vale. E assim, de apontamento pessoal em apontamento pessoal, vai a grande e profícua poesia portuguesa. (obrigado, Inês).

Já agora: a "enervante auto-comiseração" não se insinua, ela é o tom único de que esta poesia é feita. Que se confunda isso com autenticidade (seja isso o que for em poesia!!!) é um mistério.

hmbf disse...

Tem mais por onde escolher.

Jorge Melícias disse...

E para não sair do tom mais uma lapalissada. É justo. Desculpa lá qualquer coisinha...