terça-feira, 23 de setembro de 2014

EU TINHA GRANDES NAUS


Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isto fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.

Lamentam-se de mais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
«Paciência», dizia eu, «não morrerei por isso.»
E esperava o sândalo e a canela.

Fernando Assis Pacheco (n. 1937 - m. 1995), in Cuidar dos Vivos (1963). «O detalhe pessoal, aparentemente confessionalizado, ironicamente movendo-se para uma análise de si e do mundo, irradiando em locais verbais inesperados de organização e de léxico, formam o substracto de uma intenção poética onde a experiência do quotidiano, o sentimento dos outros e a vitalidade de existir se transformam em amplos sinais de beleza de que é preciso não ter medo de falar quando se está perante um autor que pertence ao número dos que não têm medo de chegar à boca de cena e de se dizer» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos). «O Fernando foi dos que nunca se esqueceu e sempre perseguiu a comum realidade humana, sem a prender em alambiques linguísticos ou estetas. Sempre soube que a retórica e a prosódica são uma representação de pessoas, de coisas, de sentimentos partlháveis, de afectos que nas palavras se atiram e nelas se recebem. É uma poesia muitas vezes zangada, por vezes irónica e auto-irónica, mas é uma poesia onde bate a atenção prioritária à humanidade de que somos feitos. E esse batimento é uma declaração. Nela não há filosóficas mortes do homem, nem contorsões que só os deslavados apreciam, nem rarefacções que são o refúgio dos estúpidos. É uma poesia existencialmente figurativa e poderosamente atenta à viagem do tempo» (Joaquim Manuel Magalhães, in Rima Pobre).