segunda-feira, 8 de setembro de 2014

THAT’LL BE THE DAY


Muito se tem escrito sobre The Searchers/A Desaparcida (1956), de John Ford (n. 1894 – m. 1973), a propósito da reposição num cinema Ideal que promete recuperar clássicos para o ambiente de uma sala de cinema. Sugiro, desde já, a leitura deste texto de João Lopes (um e dois), onde começamos por sublinhar o facto histórico: «A Desaparecida não foi um filme consagrado na altura do seu lançamento, não tendo sequer chegado às nomeações para os Oscars», facto especialmente relevante quando estamos a falar do «realizador mais “oscarizado” de sempre». Mas sublinhe-se também a questão essencial colocada por João Lopes: «até que ponto os espectadores (des)educados a ver filmes ditos de “efeitos especiais” — dominados pela instabilidade arbitrária da imagem e ruídos ensurdecedores — terão olhos e ouvidos, corpo e alma para descobrir a complexidade histórica, dramática e pulsional de um filme como A Desaparecida (1956), de John Ford?» Esta complexidade, que o western disfarçou com argumentos temperados de aventura, pode explicar, em parte, o facto histórico.



A Desaparecida surgiu na segunda metade da década de 1950, suportando a genialidade de um realizador a quem devíamos algumas obras-primas congéneres. Da trilogia da cavalaria a filmes tais como Stagecoach/Cavalgada Heróica (1939) ou My Darling Clementine/A Paixão dos Fortes (1946), são vários os exemplos onde o mais antigo género cinematográfico foi elevado ao estatuto clássico que hoje lhe conferimos. Ford, que trabalhou com alguns dos melhores actores neste domínio (Henry Fonda e John Wayne à cabeça), tornando-os figuras essenciais de um imaginário cultural específico, conquistou igualmente para o Velho Oeste uma paisagem humana que tem nos rochedos e na poeira de Monument Valley o suporte geográfico ideal. Chamado a escrever sobre o filme, Samuel Úria refere-se ainda à «maravilhosa geometria com que Ford filma famílias, as diagonais dos olhares, a câmara que tarda em mover-se porque tarda em precisar, os sentimentos revelados e os encapotados, os comic relieves e os socos no estômago, os diálogos e até o que ficou por dizer» (Ípsilon, 29 de Agosto).


Com o western fordiano regressamos aos tempos bíblicos, aos primórdios de uma civilização dividida entre o sagrado e o profano, tendo pela frente desertos inóspitos ocasionalmente atravessados por rios na margem dos quais a vida floresce. Red River e Rio Bravo (reveja-se Howard Hawks) ou Rio Grande são apenas nomes para linhas que separam universos distintos, metáforas da passagem do tempo e fronteiras naturais entre o mundo selvagem e o mundo civilizado. Também The Searchers tem o seu rio, lugar baptismal onde índios e cowboys (talvez fosse mais exacto chamar-lhes colonos) se dividem, ficando cada qual em sua margem defendendo perspectivas opostas do mundo. Daí a complexidade histórica, dramática e pulsional. Não estamos em território seguro, nada é tão óbvio quanto possa parecer no western. Os intervenientes surgem ambíguos e deixam-nos ambivalentes, porque neles nem o bem nem o mal são objectivos e absolutos.




Escrevi aqui sobre The Searchers, referindo-me à interpretação genuína de Wayne. Humanos, demasiado humanos, os heróis destas epopeias cativam-nos quando lhes vemos as feridas e quando dessas feridas vemos surdir os vícios, os defeitos, as fraquezas que os tornam, afinal, mais vulgares do que julgaríamos possível. A história é simples: um homem regressa a casa, para pouco depois de se reencontrar com a família a perder na sequência de uma emboscada Comanche. Confrontado com a possibilidade de duas sobrinhas terem sobrevivido, parte em busca das raparigas. A indicação inicial do lugar e do tempo em que os factos ocorrem não é displicente. Em 1868, a Guerra de Secessão já tinha terminado (o protagonista é um derrotado dos Estados Confederados da América). No entanto, parte do território nacional, nomeadamente o Texas, vivia sob a ameaça indígena. Muito haveria a dizer sobre estes conflitos, tendo o próprio Ford explorado dignamente esta parte da história do seu país adoptivo (as raízes são irlandesas). Porém, o mais significativo neste filme não são as relações entre o homem branco e os índios. O problema é outro.


 
 
The Searchers inspirou filmes que, apesar de notáveis, parecem passar ao lado da problemática identitária que funda a personagem controversa de John Wayne. Percebemos isso, por exemplo, quando observamos Comanche Station/Emboscada Fatal (1960), o último do denominado Ranown Cycle de Bud Boetticher (n. 1916 – m. 2001), com Randolph Scott no papel do homem que procura a mulher raptada por uma tribo Comanche. Negociar com os índios é para a personagem de Scott um pormenor táctico, ao passo que para a personagem de Wayne é uma afronta moral. Repare-se na medonha actualidade do tema, quando hoje voltamos a falar intensamente de raptos, terrorismo e eventuais possibilidades de negociação com as forças do mal. O racismo doentio de Ethan Edwards, personagem consubstanciada por Wayne, nota-se-lhe nos esgares de ódio e raiva, manifesta-se em gestos tão contraproducentes como quando dispara sobre os olhos de um índio morto ou mata búfalos indiscriminadamente para que os índios não tenham o que comer no inverno. Este ódio é levado ao limite quando Wayne decide assassinar a sobrinha sobrevivente por não suportar vê-la aculturada e integrada na tribo que a raptou.
 
 

António Loja Neves descreve assim a personagem: «A personalidade obcecada de Ethan roça o psicótico, especialmente ao confrontar-se, anos volvidos, com o corpo assassinado da [sobrinha] mais velha, o que o obriga a voltar-se para o desesperado destino da recuperação da mais nova» (Atual, 30 de Agosto). Impõe-se, então, a dúvida: o que procura este homem tão certo de si que várias vezes lhe ouvimos a deixa That’ll be the day? O que busca Ethan Edwards? Uma vitória? Vingança? Família? Identidade? Uma pátria? A canção que integra a banda sonora lança algumas pistas, talvez busque a paz de espírito que lhe sossegará coração e alma. Chamamos a esta busca, por vezes, refazer a vida. E tantas vezes ela se refaz sobre os escombros da tragédia. O dia de Ethan chega quando ele finalmente ergue nos braços a sobrinha e a devolve a um lar, o lar no qual Ethan acabará por não entrar. Na realidade, volta-lhe as costas e continua a caminhar. Entre a porta que se abre no início do filme e a porta que se fecha no seu termo assistimos ao mais angustiado combate que pode exercer-se dentro de um homem, um combate onde a identidade estilhaçada procura reconstruir-se juntando cada um dos seus pedaços. Talvez seja isso o que Ethan procura, talvez se procure a si próprio. E, neste sentido, ele personifica toda uma nação em busca de si mesma, dividida por guerras aparentemente inerentes à sua própria condição. Talvez chegue o dia.

4 comentários:

Luis Eme disse...

bela reportagem.

acho a ideia do Cinema Ideal óptima.

mas não sei se será um sucesso comercial, porque realmente isto está tudo de pernas para o ar.

acontece aos bons filmes o mesmo a muitos bons livros, passam ao lado do público.

hmbf disse...

que um filme com 60 anos esteja numa sala de cinema só prova que o público é que passa ao lado da obra e não a obra ao lado do público :-)

Luis Eme disse...

claro, Henrique, é isso, são as pessoas que lhe passam ao lado. :)

Murilo disse...

http://westerncinemania.blogspot.com.br/search/label/1956%20-%20Rastros%20de%20%C3%93dio%20%28The%20Searchers%29