quarta-feira, 15 de outubro de 2014

APENAS UMA NARRATIVA

Jorge de Sena referiu-se-lhe como «obra-prima do “romance surrealista”», o que, por si só, deveria valer atenção que não tem tido. Apenas Uma Narrativa – Romance foi originalmente publicado em 1942, em plena febre surrealista portuguesa. As aproximações (no tom e no imaginário) ao Protopoema da Serra d’Arga (1949) são evidentes, desde logo por uma referência que aparece à serra d’Arga no capítulo VII — aquele que começa deste modo: «Era evidentemente mentira tudo aquilo que eu contara na minha carta de amor, ou melhor: era tão verdade que ainda não tinha acontecido» (p. 57). Na edição que possuo, a terceira (1ª e única nas Quasi Edições, Março de 2007), José-Augusto França aponta no posfácio a terra, o amor e a solidão enquanto chaves de Apenas uma Narrativa. Carece o leitor de chaves para o que está fechado, e apesar do “discurso onírico”, da lógica sabotada, do absurdo cultivado, esta narrativa não é hermética. Podemos dispensar as chaves. António Pedro (1909-1966), não dispensando espantoso prefácio e espantosa dedicatória, disse que este era um romance porque sim e acrescentou: «há uma lógica do absurdo tão verdadeira, pelo menos, como a lógica racional» (p. 10). Ora, é essa lógica do absurdo que predomina ao longo dos dez curtos capítulos onde encontramos um plantador de mulheres chamado Adão, exércitos de esfomeados, uma Lulu fresquíssima toda coberta de olhos, um bar com quatrocentas colheres à roda de cada homem, um ladrão de meninas coberto de medalhas e outras coisas que tais bem mais reais e verdadeiras do que possamos supor: «Na aldeia as coisas não mudam muito. Os homens lavram e fornicam, as mulheres colhem e parem, as árvores assistem» (p. 50). Não surpreende, porém, a prolixidade imagética, sobretudo num autor que era pintor, sobretudo num surrealista; nem sequer surpreende a orgia de fusões, com os mundos vegetais e minerais transmutando-se e assumindo comportamentos humanos e os seres humanos largando pedaços pelo caminho, os corpos decompondo-se, o todo decompondo-se em partes que ganham vida e energia próprias numa balbúrdia de significados e de sentidos que transcendem medidas, aritméticas, geometrias e transpõem fronteiras, digamos, narrativas. O que assombra de um modo espantoso é a naturalidade do discurso, a clareza de cada palavra, a síntese, a capacidade de contar como quem conta um conto infantil. E a história, plena de aspectos alegóricos, simbólicos, paradigmas, adquire precisamente esse dom de trazer à escrita a cabeça de uma criança ou, se preferirem, a cabeça de um homem enquanto sonha. A dedicatória a Aquilino Ribeiro, que Pedro trata por Mestre, faz pois todo o sentido, e mais sentido faz quando se torna arte poética, manifesto criativo e de vida: «Não há arte moderna nem antiga. Os artistas é que são modernos e antigos com relação ao momento, e os antigos para o seu momento são sempre maus e sempre errados» (p. 14). Extraordinária maneira de enquadrar o que nestas páginas vislumbramos de respiração tradicional, sendo certo que ao imaginário fantasioso das fábulas e das alegorias e dos contos de fantasmas e afins António Pedro terá ido respigar muitas das suas imagens minhotas. E vejam como logo no primeiro capítulo, saltando de linha para linha, podemos detectar a ironia do artista exilado entre os do seu tempo no seu país: «Só a sombra que tinha feito ficou no chão como uma nódoa» (p. 19). Algumas linhas depois: «Cheirava tanto a tristeza que os académicos se acharam comovidos» (p. 19). E desataram, pois claro, a escrever sonetos sobre a sombra que cheirava a tristeza. O humor inquietante, a heterodoxia, as referências sexuais e religiosas, tantas vezes de mãos dadas na escola surrealista, a capacidade para satirizar o presente (o de então como o de agora) com metáforas abertas, livres e vivas, fazem desta narrativa, sem dúvida, uma obra-prima. Reparai só, ó leitores, no tratamento oferecido ao ladrão Ildebrando... e dizei-me se não se mantém fatidicamente actual o retrato: «Do muito andar gastaram-se-lhe os pés e depois as pernas que se transformaram nuns cotinhos. Do muito escorregar pelas chaminés gastou-se-lhe toda a grossura e os braços. As medalhas também o arranhavam muito e acabou por ficar à mercê da caridade pública, ao pé do buraco da árvore, num carrinho que lhe deram as senhoras de caridade. / Estava ali no carrinho como um vaso e fazia boa figura, porque as senhoras de caridade, quando passavam por ele, tinham sempre um regador com que o regavam como se fosse chuva só num sítio. Algumas alçavam a perna e faziam-lhe chichi em cima, o que era bom para o adubo, e tinham também uma tesoura de prata para lhe cortarem os alporques» (p. 44). Apenas uma Narrativa é um pequeno livro excepcional que talvez tenha caído no esquecimento. Digo talvez por nele se reconhecer, afinal, muita da efabulação que hoje por aí se pratica sem dedicatória os mestres (apesar do futuro garantido por críticos [impre]videntes). Que se dantes não se podia apontar o dedo, hoje é tudo às escondidas.

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