Jorge de Sena referiu-se-lhe como «obra-prima do “romance
surrealista”», o que, por si só, deveria valer atenção que não tem tido. Apenas
Uma Narrativa – Romance foi originalmente publicado em 1942, em plena febre
surrealista portuguesa. As aproximações (no tom e no imaginário) ao Protopoema
da Serra d’Arga (1949) são evidentes, desde logo por uma referência que aparece
à serra d’Arga no capítulo VII — aquele que começa deste modo: «Era
evidentemente mentira tudo aquilo que eu contara na minha carta de amor, ou
melhor: era tão verdade que ainda não tinha acontecido» (p. 57). Na edição que
possuo, a terceira (1ª e única nas Quasi Edições, Março de 2007), José-Augusto França
aponta no posfácio a terra, o amor e a solidão enquanto chaves de Apenas uma Narrativa.
Carece o leitor de chaves para o que está fechado, e apesar do “discurso onírico”,
da lógica sabotada, do absurdo cultivado, esta narrativa não é hermética. Podemos
dispensar as chaves. António Pedro (1909-1966), não dispensando espantoso prefácio
e espantosa dedicatória, disse que este era um romance porque sim e
acrescentou: «há uma lógica do absurdo tão verdadeira, pelo menos, como a lógica
racional» (p. 10). Ora, é essa lógica do absurdo que predomina ao longo dos dez
curtos capítulos onde encontramos um plantador de mulheres chamado Adão, exércitos
de esfomeados, uma Lulu fresquíssima toda coberta de olhos, um bar com
quatrocentas colheres à roda de cada homem, um ladrão de meninas coberto de
medalhas e outras coisas que tais bem mais reais e verdadeiras do que possamos
supor: «Na aldeia as coisas não mudam muito. Os homens lavram e fornicam, as
mulheres colhem e parem, as árvores assistem» (p. 50). Não surpreende, porém, a
prolixidade imagética, sobretudo num autor que era pintor, sobretudo num
surrealista; nem sequer surpreende a orgia de fusões, com os mundos vegetais e
minerais transmutando-se e assumindo comportamentos humanos e os seres humanos
largando pedaços pelo caminho, os corpos decompondo-se, o todo decompondo-se em
partes que ganham vida e energia próprias numa balbúrdia de significados e de
sentidos que transcendem medidas, aritméticas, geometrias e transpõem
fronteiras, digamos, narrativas. O que assombra de um modo espantoso é a
naturalidade do discurso, a clareza de cada palavra, a síntese, a capacidade de
contar como quem conta um conto infantil. E a história, plena de aspectos alegóricos,
simbólicos, paradigmas, adquire precisamente esse dom de trazer à escrita a
cabeça de uma criança ou, se preferirem, a cabeça de um homem enquanto sonha. A
dedicatória a Aquilino Ribeiro, que Pedro trata por Mestre, faz pois todo o
sentido, e mais sentido faz quando se torna arte poética, manifesto criativo e
de vida: «Não há arte moderna nem antiga. Os artistas é que são modernos e
antigos com relação ao momento, e os antigos para o seu momento são sempre maus
e sempre errados» (p. 14). Extraordinária maneira de enquadrar o que nestas páginas
vislumbramos de respiração tradicional, sendo certo que ao imaginário
fantasioso das fábulas e das alegorias e dos contos de fantasmas e afins António
Pedro terá ido respigar muitas das suas imagens minhotas. E vejam como logo no
primeiro capítulo, saltando de linha para linha, podemos detectar a ironia do
artista exilado entre os do seu tempo no seu país: «Só a sombra que tinha feito
ficou no chão como uma nódoa» (p. 19). Algumas linhas depois: «Cheirava tanto a
tristeza que os académicos se acharam comovidos» (p. 19). E desataram, pois
claro, a escrever sonetos sobre a sombra que cheirava a tristeza. O humor
inquietante, a heterodoxia, as referências sexuais e religiosas, tantas vezes
de mãos dadas na escola surrealista, a capacidade para satirizar o presente (o de então
como o de agora) com metáforas abertas, livres e vivas, fazem desta narrativa,
sem dúvida, uma obra-prima. Reparai só, ó leitores, no tratamento
oferecido ao ladrão Ildebrando... e dizei-me se não se mantém fatidicamente actual
o retrato: «Do muito andar gastaram-se-lhe os pés e depois as pernas que se
transformaram nuns cotinhos. Do muito escorregar pelas chaminés gastou-se-lhe
toda a grossura e os braços. As medalhas também o arranhavam muito e acabou por
ficar à mercê da caridade pública, ao pé do buraco da árvore, num carrinho que
lhe deram as senhoras de caridade. / Estava ali no carrinho como um vaso e
fazia boa figura, porque as senhoras de caridade, quando passavam por ele,
tinham sempre um regador com que o regavam como se fosse chuva só num sítio. Algumas
alçavam a perna e faziam-lhe chichi em cima, o que era bom para o adubo, e
tinham também uma tesoura de prata para lhe cortarem os alporques» (p. 44). Apenas
uma Narrativa é um pequeno livro excepcional que talvez tenha caído no
esquecimento. Digo talvez por nele se reconhecer, afinal, muita da efabulação
que hoje por aí se pratica sem dedicatória os mestres (apesar do futuro
garantido por críticos [impre]videntes). Que se dantes não se podia apontar o
dedo, hoje é tudo às escondidas.
Sem comentários:
Enviar um comentário