Sol, pássaros voando, seara madura...
Este, o poema interrompido.
Só os dias a fio que o não são:
Tempo retido
Como água podre no charco;
Gritos e sangue escorrendo
Como linha de formigueiro
No chão encardido,
Amassando
pontas de cigarro, vómitos, dentes partidos.
Nem dia nem noite:
Apenas a janela entaipada
(Lá fora a promessa das quatro estações),
E a porta que de súbito se abre,
Guinchando como pássaro agoirento.
O resto, como ressaca distante ou búzio,
São as pancadas surdas, sábias, sádicas,
Como passos de patrulha a horas mortas,
Como tiquetaque de relógio
Marcando não sei que hora...
Ou se a hora!
Tomaz Kim (n. 1915 - m. 1967), in Flora & Fauna (1958). «Um poeta de resignadas insatisfações, por vezes contíguo ao neo-realismo, que da poesia anglo-saxónica sua contemporânea assimilou certo eliptismo prosaico» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa). «A poesia de Tomaz Kim, de uma simplicidade formal um tanto rebuscada, em cuja originalidade se quis ver o reflexo de certa poesia inglesa moderna (reflexo que é, na verdade, apenas uma identidade de cultura e de formação) é, no seu pessimismo brando e meditativo, extremamente significativa de uma humanidade que perdeu o convívio com tudo e até consigo própria. De um dramatismo pacifista que a fez roçar por certos aspectos - os negativos - do neo-realismo, de que foi aliás um dos iniciadores, esta poesia discreta e comovida, muito lúcida de si mesma, fere uma admirável nota puramente pessoal, ainda que restrita, pelo seu tom de aceitação resignada que se não ilude, pela sua amargura agnóstica, pela ironia que envolve um singelo desespero retraído. Poesia elíptica e oblíqua, dada todavia numa expressão muito directa que não ignora nenhum recurso estilístico, eis o que talvez melhor a defina» (Jorge de Sena, Líricas Portuguesas).
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