quarta-feira, 1 de outubro de 2014

impossível confissão (para Mário de Sá-Carneiro


a incontinência dum dia assim: estuporado
de azul, quase dado de tão distante.
a alma ao rubro descobre-se nesse fósforo incendiado,
longe do corpo porque na visão.

sofro de transparências, saudoso das baças
obtusas imagens em que o gelo se confundia com o fogo.
sou-me habitação alheia, hóstil, como um eucalipto
erecto ao sol, por mera solenidade do alibi.

o rio passa mas na imagem sei perpétuo
o erro que me impede de partir.
será vocação o sol refulgente
nas asas metálicas do estorninho?

a casa encosta-se ao ouvido, na ribeira
as pedras líquidas onde o coração revolto
se camufla. no musgo cauterizado pelo verão
aí nasci.

não senti por nenhum corpo o que senti.
é difícil precisar a qual dos ramos pertence
o zéfiro. mas o escândalo dum cavalo crepitando
sob a chuva, não renego.

só desvelar me importa, não julgar o que vejo;
pode sobrar o restante que não me interessa: não existe,
mesmo que mais verdadeiro. até a morte nos seus indícios
se ludibriar, como a neve nos dias de maio.

António Cabrita (n. 1959), in O Milagre das Tribos (1982). «(...) muito mais importante do que o uso da matéria histórica e política é a imagem heróica do poeta-vate, exigindo uma retórica e uma pose à altura da sua grandeza. Como é fácil perceber, isto tem os seus riscos, e não são pequenos: o risco da ênfase, da hipérbole, do artifício. Mas temos de reconhecer que estes poemas, sempre pensados como uma operação de risco, ganham força exactamente na medida em que se confrontam com provas difíceis. E mesmo quando as suas fantasias barrocas e a sua exuberência metafórica (...) nos suscitam algumas reservas, eles seguem na direcção desse «fundo impróprio» (...), que não é propriamente um objectivo que se alcance com gestos cautelosos e elegante compostura. Certo é que a poesia de António Cabrita é em tudo contrária a uma nova austeridade que encontramos em muitos poetas recentes. Nela, as metáforas são o próprio órgão do pensamento e, por isso, ficam às vezes submetidas a um exercício rebuscado» (António Guerreiro, Expresso, 6 de Dezembro de 2003).

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