Excelentíssima ministra, escrevo-lhe depois de ter sido informado sobre uma sua afirmação. Trata-se de um raciocínio demonstrativo da lógica da batata a que nos habituou o seu Governo. A senhora ministra declarou que a classe média é a mais prejudicada pelo Orçamento de Estado para 2015 porque “ricos temos poucos”. É a chamada verdade de la Palice que custa reconhecer. De facto, se pensarmos que, como recentemente revelava um relatório da Oxfam, metade da riqueza mundial pertence a 1% da população, é natural que não tenhamos muitos ricos. São poucos os ricos no mundo, comparados com os pobres. Mas os poucos ricos são mesmo muito ricos, são infinitamente mais ricos do que a infinitamente maioria dos pobres e muito pobres. A senhora ministra nada terá que ver com estas aritméticas, mas podia pensar que os poucos ricos que temos em Portugal podem ter o seu quê de responsabilidade na existência de tantos pobres. Sabemos que a responsabilidade não é o forte do nosso país, sabemos que os muito ricos que tornaram possíveis todos esses escândalos que vão escoando nos esgotos da banca portuguesa podem continuar a coleccionar os seus Miró e a passar férias na Comporta. Desconhecíamos, porém, a sua capacidade para numa simples frase sintetizar com cruel verdade o problema do país.
Repare, eu sou de origens muito humildes. Os meus pais prosperaram no comércio, pagaram os cursos aos filhos, os filhos vão-se desenrascando. Trabalho há oito anos numa livraria, depois de dez anos a leccionar. Tenho uma licenciatura à qual muito gostaria de acrescentar outros estudos não fossem as despesas correntes que, porque não sou rico, me impedem de continuar a estudar e me obrigam a deslocar-me todos os dias para um shopping onde ganho o pão de cada dia. A vida é assim. Não nasci rico, não sou filho de gente rica, dos poucos que há no país, não sou rico, dificilmente poderei vir a sê-lo. Porquê? Porque não tenho vocação para tal, mas também porque estou forçado pelas circunstâncias a continuar pobre. No tempo em que o meu pai tinha a minha idade era, pelo menos, possível sonhar com essa riqueza que não chega a todos. Ele lutou e amealhou, foi-lhe possível. No meu tempo, que é o tempo da senhora ministra e dos seus poucos ricos, esse sonho foi-nos usurpado, essa ambição foi cerceada pela raiz com impostos, burocracias, taxas e taxinhas que os senhores inventam todos os dias para que, et voilà, os poucos ricos possam continuar a enriquecer e a classe média seja, como a senhora diz, a mais sacrificada com o Orçamento de Estado. Fica-lhe bem reconhecê-lo.
O que talvez a senhora não reconheça, porque está num patamar acima da realidade que a impede de sentir o que a maioria dos cidadãos sente, é que para mim, e falo de mim apenas a título de exemplo, a senhora é rica. A senhora e todos os seus colegas ministros, para mim, eu que não me queixo da falta de nada verdadeiramente essencial, para mim, repare, a senhora e todos os seus colegas ministros, todos os vossos secretários de estado e sub-secretários e técnicos especializados contratados como só os senhores sabem contratar, todos vós sois ricos quando comprados comigo e com a maioria dos cidadãos deste país. A senhora, para nós, está no lote dos poucos ricos que há em Portugal, embora saibamos existir gente muito mais rica que a senhora ministra. É uma questão de escala. Por vezes, confesso, vejo indigentes a brigar por causa das beatas largadas num cinzeiro público e penso: foda-se, de que me queixo eu? Ainda posso comprar os meus cigarros. Serei, para a senhora e para a madame Jonet, um privilegiado. Mas não tanto quanto os privilegiados de que Gustavo Sampaio fala no livro que tem por título a mesma palavra, ou como os facilitadores investigados pelo mesmo autor, ou como os chamados donos de Portugal que deram azo a outro livro assaz esclarecedor.
Pois bem, senhora ministra, é claro que temos poucos ricos. Eu gostaria que tivéssemos mais. Como tantas vezes ouvi há dias, a propósito de um grande prémio no Euromilhões que por sorte tornou rico mais um português, a mim bastavam-me cem mil euros daqueles cento e noventa milhões. Podia voltar a estudar, e sabe-se lá que mais. Podia contribuir para as dores de cabeça da Angela Merkel e ser um português mais culto, palavra cada vez mais distante dessa outra que dizemos riqueza. A senhora é uma rica ministra, tem um rico marido que a defende e protege com ameaças a jornalistas; nós, os pobres, pagamos e calamos ou voltamo-nos uns contra os outros. Os senhores, que estão por cima de nós, sabem destas nossas fraquezas. E por isso podem continuar a dormir descansados enquanto engendram e aplicam orçamentos que nos agridem. Sabem que não teremos reacção, estamos demasiado ocupados com a nossa pobreza. Só os ricos teriam tempo para vos fazer a vida negra. Nesse caso, nem o seu marido lhe valeria. Bem haja,
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