Nascido por acaso em Bruxelas, onde o pai se encontrava a
trabalhar, Julio Cortázar (1914-1984) pisou terras argentinas já com quatro
anos feitos. Cresceu nos subúrbios de Buenos Aires, tendo sido abandonado pelo pai aos
seis anos. O desaparecimento súbito da figura paterna encontrará várias
explicações, sendo certo que a família sobreviveu à custa do trabalho da mãe,
do dinheiro de uma avó e de um fundo de aposentadorias. Conta-se que ao ter
conhecimento da morte do pai no interior da Argentina, Cortázar terá demovido a
mãe de aceitar a herança a que tinha direito: uma pensão e fazendas. Os estudos
permitiram-lhe começar a trabalhar cedo, como professor, nas cidades de
Bolívar, Chivilcoy e Mendoza. Trabalhou ainda como editor, tradutor e colaborou
no argumento de um filme sobre o qual não reza a história. Os primeiros livros,
uma colecção de poemas intitulada Presencía (1938) e o poema dramático Los
Reyes (1949), foram publicações humildes de circulação restrita. 1951 será o
ano da edição de Bestiário. Coincide com a partida do escritor para Paris, onde
se fixará e virá a adquirir cidadania francesa. No Bestiário encontramos aquele
que foi o primeiro conto publicado por Cortázar: Casa Ocupada. O episódio da
publicação foi descrito por Jorge Luis Borges (1899-1986) e merece ser
recordado:
Em mil novecentos e quarenta e tantos, eu era secretário
de redacção de uma revista literária [Los anales de Buenos Aires], mais ou
menos secreta. Certa tarde, uma tarde como tantas outras, um rapaz muito alto,
cujos traços não consigo recuperar, trouxe-me um conto manuscrito. Disse-lhe
que voltasse dali a dez dias e que lhe daria o meu parecer. Voltou dali a uma
semana. Disse-lhe que o seu conto me agradava e que já tinha sido entregue na
tipografia. Pouco depois, Julio Cortázar leu em letras de imprensa «Casa
Ocupada» com duas ilustrações a lápis de Norah Borges. Passaram-se os anos e
ele confiou-me uma noite, em Paris, que aquela fora a sua primeira publicação.
Honra-me ter sido o seu instrumento.
Casa Ocupada é boa introdução ao universo cortazariano,
com suas figuras fantasmagóricas povoando as memórias de um espaço e influindo
em situações cujos tempos são indetermináveis. Mas os contos de Bestiário
introduzem-nos, igualmente, noutras dimensões da obra do autor de Rayuela
(1963) que serão posteriormente desenvolvidas até à exaustão. Neles deparamos
com seres fantásticos tais como as mancúspias, alucinações produzidas por obsessões
inexplicáveis (o jaguar do conto que ofereceu o título ao livro), porventura
projecções de conteúdos provenientes do inconsciente. A face surrealista desta
obra torna-se evidente, mas não esgota o sentido da mesma. Do mesmo modo, o
absurdo não é o aspecto mais determinante nos livros de Cortázar. É inegável a
importância do absurdo, o carácter subversivo e inventivo, o humor negro da
escola surrealista, mas todos esses elementos parecem conjugar-se sob o tecto
de uma interrogação acerca dos limites da linguagem na sua relação com o real.
Histórias
de Cronópios e de Famas (1962), um dos mais populares livros de Cortázar,
radicaliza a dimensão absurda das suas histórias. Porém, encontramos nesses relatos
que subvertem o quotidiano, sabotam a normalidade, renegam perspectivas
unilaterais sobre a vida comum, buscam o caos que se esconde nas sombras da
verdade, encontramos nesses relatos uma interrogação sobre o papel da linguagem
que se manifesta tanto em experimentações sintácticas, onde o dizer procura
adequar-se às surpresas do real, como numa muito objectiva tomada de posição
sobre o aspecto labiríntico de uma narrativa (recorde-se que a figura do Minotauro no
labirinto é uma das que primeiramente interessa ao escritor). Neste sentido, o texto inicial do famoso Manual de Instruções (uma das quatro partes que compõem as
Histórias de Cronópios e de Famas) funciona como uma espécie de “arte narrativa”:
Ter de ganhar o dia-a-dia todos os dias, esbracejar num
mundo pegajoso, ter de acordar todas as manhãs num repugnante cubículo, e
satisfeito que nem um cão por tudo estar nos seus lugares: a mesmíssima mulher,
os sapatos de sempre, o eterno sabor da eterna pasta dentífrica, a mesma
tristeza das casas fronteiras, a suja tabuleta com o letreiro HOTEL DE
BELGIQUE.
Enfiar a cabeça como um touro vencido pela multidão
transparente em cujo centro tomamos o café com leite e folheamos o jornal para
saber o que aconteceu num ponto qualquer do globo. Não consentir que o acto
delicado de girar o trinco da porta, acto que tudo poderia modificar, se cumpra
com a fria eficácia de um reflexo quotidiano. Até logo, querida. Passa bem.
Apertar uma colher na mão e sentir o seu gemido de metal,
a sua advertência suspeita. Dói negar uma colher, negar uma porta, negar tudo o
que o hábito seduz com suavidade satisfatória. É tão mais simples aceitar a
solicitude fácil da colher, usá-la para mexer o café.
E não há nada de mal em que as coisas nos não vejam
mudar.
Que ao nosso lado esteja sempre a mesma mulher, o mesmo
relógio e que o livro aberto sobre a mesa de cabeceira recomece a andar na
bicicleta dos nossos óculos, por que haveria isso de ser mau? Mas há que baixar
a cabeça como um touro triste e empurrar para longe o centro do globo de
cristal, até outro tão perto de nós, inacessível como o picador tão perto do
touro. Forçar os olhos para o que no céu aceita teimosamente o nome de nuvem,
sua réplica catalogada na memória. Não penses que o telefone te irá dar o
número que procuras. Por que razão to daria? Somente o que já tens preparado e
pronto, o triste reflexo da tua esperança, esse macaco que se coça à mesa e treme
de frio, chegará aos teus ouvidos. Escavada a cabeça a esse macaco, vai contra
as paredes, rebenta-as. Alguém que canta no andar de cima! Nesta casa há um
andar de cima, com outras pessoas! Um andar de cima onde vivem pessoas que nem
imaginam o andar de baixo, e cá estamos todos na bola de cristal. E se de repente
uma traça aparece na ponta de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olha-a,
a essa traça que vive na bola de cristal frio, nada está perdido. Ao abrir a
porta, ao chegar à escada, saberei que a rua está já ali em baixo; não o molde
imposto, não as casas conhecidas, não o hotel em frente: a rua, floresta viva
onde cada instante pode invadir-me como uma magnólia, onde as caras começam
quando as olho, quando avanço, quando com os cotovelos, pestanas e unhas me
atiro minuciosamente contra a massa da bola de cristal, e arrisco a vida
enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal à esquina.
Sendo certo que estes contos emanam por vezes coincidências
entre o ambiente arquitectado e os aspectos biográficos conhecidos
do autor - «Há anos que trabalho na Unesco e outros organismos internacionais e
ainda conservo algum sentido de humor…», diz no conto Possibilidades da Abstracção
-, não menos certa é parecerem construídos no interior de uma vertigem sugerida
pela relação entre o sujeito que observa e o objecto observado. Permito-me
sublinhar do texto supracitado a oposição entre o quotidiano banal e os efeitos
surpreendentes obtidos pela recusa dessa banalidade. Sentir o gemido do metal
da colher é olhar a colher já de uma outra forma, é apreendê-la de um modo incomum, é aceitar que uma colher não é apenas uma colher nem apenas uma colher cabe num nome, é perspectivar o mundo
aceitando na sua lógica interna o caos que nos ameaça, é aceitar uma realidade
que escapa à nossa necessidade corrente de formatar, organizar, explicar,
compreender, é ver para lá do visível partindo do princípio que aquilo que não
vemos, o fruto da imaginação, é inerente ao que sentimos: logo existe com a
mesma força do que vemos. Borges dizia ainda:
As personagens da fábula são deliberadamente triviais. Rege-os
uma rotina de amores casuais e de discórdias casuais. Movem-se entre coisas
triviais: marcas de cigarro, montras, balcões, uísque, farmácias, aeroportos e
cais. Resignam-se aos jornais e à rádio. A topografia corresponde a Buenos
Aires ou a Paris e podemos acreditar a princípio que se trata de meras
crónicas. Pouco a pouco sentimos que não é assim. Muito subtilmente o narrador
atraiu-nos para o seu terrível mundo, em que a felicidade é impossível. É um
mundo poroso, em que se entretecem os seres; a consciência de um homem pode
entrar na de um animal ou a de um animal num homem. Também se joga com a
matéria de que somos feitos, o tempo. Nalguns contos fluem e confundem-se duas
séries temporais.
Não concordando necessariamente com o juízo moral,
parece-me certa a leitura do processo. No entanto, ao atrair-nos para o seu
mundo o narrador alerta-nos sobre novas possibilidades acerca do nosso próprio
mundo. De facto, não coexistimos em mundos diversos. Partilhamos o mundo da linguagem.
E se o meu mundo é a minha linguagem, ou vice-versa, então, mais uma vez,
estamos na presença de um esforço de reconstrução da realidade que só pode transcender
as convenções do discurso. O fantástico, em Cortázar, não se opõe ao real, ele
é a própria realidade. Assim devemos aceitá-lo se o pretendemos entender. A
colectânea As Armas Secretas (1959), sobre a qual escrevi este texto, é das
primeiras onde as séries temporais se confundem com especial interesse. O conto
Cartas da Mamã é disso extraordinário exemplo. Mas mais do que a confusão de
tempos e de espaços geográficos, o que me parece agora importante sublinhar é o
swing dos textos, o ritmo que as palavras incutem às imagens e que estas percutem nas situações convocadas. Improviso? Talvez, como improvisar é
frasear entre riffs meticulosamente construídos. Note-se como da trivialidade
de que fala Borges a personagem central de As Armas Secretas consegue concluir a
excepcionalidade de tudo e o absurdo que rege as coisas, sonho de desejos obscuros
que pululam na mente e se projectam nas acções de um modo mais ou menos fiscalizado.
Concluamos:
Agora vou pensar em ti, querida, apenas em ti, durante
toda a noite. Vou pensar apenas em ti, é a única forma de me sentir a mim
mesmo, ter-te no centro de mim mesmo como uma árvore, soltar-me, pouco a pouco,
do tronco que me sustém e me guia, pairar à tua volta, com cuidado, sondando o
ar com cada folha (verdes, verdes, eu mesmo e tu mesma, tronco de seiva e
folhas verdes: verdes, verdes), sem me afastar de ti, sem deixar que o outro se
intrometa entre tu e eu, me distraia de ti, me prive nem que seja por um
segundo, que esta noite está a girar até ao amanhecer e que lá, do outro lado,
onde vives e dormes, será outra vez de noite quando chegarmos juntos e
entrarmos em tua casa, quando subirmos os degraus do alpendre, acendermos as
luzes, faremos festas ao teu cão, beberemos café, fitar-nos-emos durante algum
tempo, antes que eu te abrace (ter-te no centro de mim mesmo com o uma árvore)
e te leve até às escadas (mas não há nenhuma bola de vidro) e começamos a
subir, a subir, a porta está fechada, mas tenho a chave no bolso…
1 comentário:
Mto bom
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